DAlila Teles Veras |
Beats e Marginais - as últimas escolas 1997 - Abril, 5. Os jornais anunciam, com um inesperado destaque, a morte do poeta Allen Ginsberg, na Califórnia, aos 70 anos. 1996 - O senhor de calva acentuada, camisa social branca e suspensórios, caneta no bolso da camisa, poderia ser confundido com algum executivo aposentado a posar ao lado de seu filho ou neto. Acontece que essa foto está na contracapa do belíssimo livro Illuminated Poems (Four Walls Eight Windows - NY) e o aparentemente bem comportado senhor é Allen Ginsberg, a lenda viva (ainda, à época) da Geração Beat. Apenas mais um truque zen budista de quem viveu/imitou a arte e a vida vertiginosamente. O mais moço? Eric Drooker, o também visionário e profeta, ilustrador voltado para a problemática urbana, 38 anos, quase a mesma idade do movimento que, em meados dos 50, abalou as até então bem comportadas estruturas literárias norte-americanas. Na esteira da mania beat, que assola os Estados Unidos e a Inglaterra, surgem a todo momento reedições críticas, fotobiografias e outros incontáveis estudos sobre a literatura, a arte e o comportamento beat. Uma livraria alternativa, a Compendium Books, em Cadem Town, arredores de Londres, publicou no final do ano passado um catálogo com cerca de 350 títulos, só sobre literatura beat disponível em seu acervo, onde também podem ser encontrados números da revista Beat Scene, com mais de 25 números publicados, além de dezenas de gravações "piratas". Seria esse revival uma represália ao "neobobismo", ou onda de puritanismo reacionário que surge em todo o planeta neste final de século? Vejamos os antecedentes históricos. 1955. A guerra fria, o macarthismo, a repressão, o tédio e a passividade marcavam a vida nos Estados Unidos da América. A grande dama da poesia americana, Marianne Moore, reinava absoluta, com sua poesia elegante e fria. Para os mais observadores, sinais de inconformismo no comportamento e nas artes já pipocavam aqui e ali há alguns anos. A Galeria Six de San Francisco, Califórnia, promove a 13 de outubro uma leitura histórica de poesia. Um poema escandaloso e delirante, que falava abertamente de drogas, sexo e homosexualismo, lido pelo seu jovem autor, fez o delírio da moçada: Howl, de Alen Ginsberg. Ficava, assim, decretado que a poesia do cotidiano estava incorporada ao cotidiano das pessoas. Seis meses após a famosa leitura, esse poema era publicado pela Editora City Lights, apreendido logo a seguir, levando à prisão o seu editor, o também poeta beat Lawrence Ferlinghetti, que acabou sendo detido por obscenidade. Essa era a mínima punição que se podia esperar da repressora sociedade da época que, ao se ver refletida e acusada na poesia do jovem transgressor ("Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus") vingou-se, para não enlouquercer com ele. Como a confirmar isso, Ginsberg teria dito: "eu sou os Estados Unidos" e isso, naturalmente, incomoda. No ano seguinte, Uivo é liberado e transforma-se num estrondoso sucesso. É, certamente, o poema mais lido deste século, representando o paradigma das aspirações da Geração Beat. No entanto, em meio a toda polêmica da época, Ginsberg era apontado pela revista Life como o mais interessante poeta jovem da América do Norte que, triste, acusava "América, como poderei escrever uma litania nesse seu estado de bobeira? (...) América na verdade você não quer ir à guerra". Mas a Geração Beat não se fez com um poeta só. Prosadores igualmente rebeldes, como Jack Kerouac (a quem Ginsberg conhecera poucos anos antes) e William Burroughs que, por sua vez, era o guru de Kerouac e Ginsberg, formavam a santíssima trindade do movimento, ambos igualmente rebeldes, polêmicos e de vida desregrada. Ao sucesso de Howl, seguiu-se o de On the Road, de Kerouac, igualmente best seller, que passou a bíblia de todo mochileiro. Outros importantes nomes do movimento como Norman Mailer (o percursor), Gregory Corso, Diane Di Prima, Ray Bremser, e muitos outros foram publicados em português numa edição pioneira - a antologia Geração Beat - pela Editora Brasiliense em 1968, organizada pelo também beat Seymour Krim e traduzida por Marcello Corção. A primeira e única edição de Uivo no Brasil foi publicada somente em 1984 pela Editora L&PM (Uivo Kaddish e outros poemas), numa impecável tradução de Cláudio Willer, que também assina a igualmente competente introdução. Ambas as obras só podem ser encontradas em sebos, pois não foram reeditadas. A Editora L&PM é a responsável pela publicação da escassa bibliografia beat existente entre nós, com alguns títulos ainda em catálogo. O movimento desencadearia a contracultura dos anos sessenta, da qual Ginsberg foi um dos líderes. O exercício da contracultura, por sua vez, desembocaria, numa prática de subversão política, com a repulsa à guerra no Vietnan e ao próprio way of life americano que acabou marcando uma era de revolta pacífica, através de grandes manifestações "hippies", ou geração "flower power", termo cunhado pelo próprio Ginsberg. Contrariando a contumaz rejeição da crítica, a obra de Ginsberg, Kerouac e Bourroughs, principais figuras do movimento, acabou provando que essa literatura não poderia sobreviver se se sustentasse apenas nos frágeis pilares baseados na própria conduta pessoal de seus autores. Mostrou também que os (muitas vezes condenáveis) excessos de conduta de seus membros não eram a sua única matéria-prima. Foi além. Não apenas introduziu o cotidiano e a realidade no seu discurso, mas pensou e modificou a própria poesia, inspirado em vertentes como Walt Whitman e William Blake e até Pound. Como se sabe, a repercussão dessa revolução foi mundial e, do Japão à Rússia, ainda podem ser observados os seus ecos. No Brasil, apesar do comportamento dos jovens à época da contracultura ser uma pálida cópia dos hippies americanos e, a despeito de ter-se lido muito pouco em português a principal literatura do auge do movimento, aconteceu, na poesia, um movimento que se assemelha, em alguns aspectos, à Geração Beat, a chamada Geração Marginal. Primeiramente, pelas próprias circunstâncias históricas. O Brasil pós 64 guardava muitas semelhanças com a América de 56. A repressão política obrigou os poetas a assumir um discurso que, na sua irreverência, também refletia sua conduta pessoal. Ambos, beats e marginais, viviam à margem do sistema e criticavam o seu status quo, numa luta ferrenha contra a censura. Aqui, como lá, também o cotidiano e o coloquialismo foram incorporados à poesia, só que, no Brasil, isso aconteceu de uma maneira muito mais apropriada ao nosso espírito tropical: com alegria e irreverente ironia. A poesia, em ambos os casos, foi levada ao cotidiano das pessoas, através de recitais e, sobretudo, com a venda de livros e folhetos de mão-em-mão. Essas publicações também circulavam freneticamente via correio. A princípio mimeografadas, depois copiadas via Xerox, e posteriormente em off-set, atingiram números impressionantes. Leila Miccolis, estudiosa do assunto, chegou a listar 800 títulos num único ano. Outra semelhança: muitos dos poetas mais representativos de ambas as gerações também estiveram ligados à música. Os beats grandemente influenciados pelo jazz (Charlie Parker e o jazz bop) e os marginais em parceria com músicos da MPB (tropicália) e, depois, também o rock, fator que em muito os ajudou na difusão de sua obra poética. E, finalmente, mas não menos importante, é a resistência passiva qu, de uma forma ou de outra,representou uma verdadeira trincheira contra a massificação da indústria cultural. A Cigarra é um exemplo dessa resistência que, ao contrário de muitas outras publicações, teve o bom senso e a consciência da evolução, renovando-se, antenada com a produção do momento, dosando-a com a obra de poetas já consagrados. Beats, beatnicks, hipsters, marginais ou poetas do sufoco foram/são, na verdade, os últimos poetas a se engajarem em movimentos literários do século. O futuro certamente prescindirá de rótulos, escolas ou classificações. Tanto isso é verdade, que o profeta-rebelde, aquele das grossas lentes, que às vezes se disfarçava em comportado senhor, assim respondeu à pergunta do que seria poesia: é nudez. Ã segunda pergunta do porque da nudez, ele, simplesmente, ficou nu. Impossível prova mais eloquente de não-filiação a nada. Portanto, a maior e mais clara herança deixada por esses "mal vistos" é justamente a liberdade de criação, o distanciamento de dogmas e a própria atitude poética. "O método deve ser a mais pura carne/e nada de molho simbólico" como profetizou Ginsberg. (ensaio publicado na revista literária A Cigarra, no. 30, Santo André, SP, maio 1997) |
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