DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 Ser Editor e Poeta no Grande ABC - uma contradição

Meditei sobre a possível contradição apontada pelo título que foi sugerido para esta minha fala e quero dizer que não vejo essas duas atividades, a de poeta e a de editora, como contraditórias, uma vez que faz parte da tradição brasileira, os escritores assumirem a publicação de suas obras. Foi assim com grandes nomes da nossa literatura, como Manuel Bandeira que até os 50 anos de idade, apesar do reconhecimento da crítica, ainda não possuía um editor disposto a publicá-lo. Seu livro Estrela da Manha só foi publicado, graças à doação de papel por um amigo e a impressão foi custeada por subscritores. Declarou-se uma tiragem de 57 exemplares, mas a verdade é que o papel só deu para 50, conforme o próprio Bandeira relatou em seu livro Itinerário de Pasargada. Foi assim também com Mário de Andrade, que custeou Paulicéia Desvairada e outros seus livros. Não poderia ser diferente comigo, principalmente pelo fato de que a maioria dos meus livros pertencem ao gênero considerado mais pobre da história da literária brasileira, a poesia, quase nunca levado a sério, muito menos como produto que possa ser inserido na lógica do mercado. A poesia, no dizer de Octávio Paz, tem sido um alimento que a burguesia – como classe – tem sido incapaz de digerir, é um alimento para dissidentes e desterrados, pouco valorizada na própria escola, muito menos por editores e livreiros, aqueles por se recusarem terminantemente a editá-la e estes por não se empenharem em divulgá-la, colocando-a, invariavelmente, nas prateleiras perto do chão. É preciso, já disse alguém, ficar literalmente "de joelhos" para comprar poesia em nosso país, uma vez que os livros deste gênero literário ficam, invariavelmente nas prateleiras rente ao chão das livrarias.

Ser poeta e editora no Grande ABC mudaria alguma coisa nesse panorama? Onde a contradição aqui? Estaria essa contradição no fato de sermos tidos como uma região operária, conhecidos e tidos no imaginário nacional e internacional, como uma região de conquistas sociais trabalhistas, mas não letrada? Não creio.

Há tarefas para as quais somos escolhidos. Não é uma opção, é fruto de uma circunstância. Para a tarefa de editora eu fui escolhida, tornei-me editora por um imperativo categórico, consciência também da necessidade premente de fazer algo em prol do livro e da leitura, pois tenho a convicção de que o editor, assim como também o escritor, devem ir além do papel, bem como do suporte livro, cumprir uma função de responsabilidade social, de agentes transformadores e fomentadores de idéias. Foi pensando dessa forma que, além dos meus próprios livros, passei a editar livros de outras pessoas. Em 1992 fundei a Alpharrabio Livraria Espaço-Cultura, em Santo André que, muito mais que uma simples livraria de livros de segunda mão, já nasceu com um outro conceito que foi o de ir além e tornar-se também um pólo difusor e de debate de idéias e projetos. Foi assim que nasceu, em 1993, a Alpharrabio Edições que já editou mais de 60 títulos, na sua quase totalidade de autores do Grande ABC.

Por que Grande ABC? Pelo simples fato de que é aqui que eu moro, é nesta região que nasceram minhas 3 filhas, é aqui que pago meus impostos, é por esta região que me interesso, além do fato de não ter surgido aqui nenhuma editora que acreditasse na produção local que já é considerável e de boa qualidade. É também por acreditar em algo que vaticinei num texto publicado nos anos 80 de que ainda veria o ABC das lutas operárias ser conhecido pelo ABC das lutas literárias. Desde então tenho lutado para que isso aconteça. Não planejei nada, as coisas foram acontecendo. O livro sempre foi, para mim, objeto quase sagrado, a forma mais importante de transmissão de conhecimento, de preservação da memória e, mais, a fórmula mágica de programar viagens e usufruir do prazer inigualável da leitura. Foi, mais do qualquer outra circunstância, a paixão pelo livro que me levou a editar livros, jamais a idéia de mera atividade comercial, mesmo porque o livro é, para mim, uma mercadoria muito especial, que necessita de um tratamento diferenciado.

Perdoem por esta minha confissão que pode ser até descabida neste momento, uma vez que falo para jovens que buscam instrumentalizar-se, através de um curso de nível universitário, para enfrentar o mercado de trabalho na área da produção editorial e, é claro, ganharem dinheiro com isso. Não quero que este meu depoimento sirva de exemplo, mas, por outro lado, acredito com muita firmeza que a paixão e o preparo cultural são elementos essenciais para a nobre tarefa de publicar livros. O editor, como já disse, tem um função de responsabilidade social e, assim como o educador, é também um agente transformador da sociedade. Daí ser necessária a bagagem cultural de quem edita e a consciência e a responsabilidade de seu papel.

Sou, assumidamente, o que chamam de editora nanica. Não editei nenhum livro que possuísse apelo comercial nem características de best-seller. Os distribuidores - e vocês todos sabem, que a distribuição é a grande tragédia de quem edita livros - não aceitam o tipo de livro que edito para comercializar. Num mercado dominado por livros de auto-ajuda e livros instrumentais para profissionais e exigências escolares, resta uma fatia muito pequena para a literatura e menor ainda para o tipo de literatura que publico. Tenho um conselho editorial que analisa com rigor os textos que recebemos, há um crivo crítico e uma exigência de qualidade literária para nossa chancela. Apesar de 50% de nosso catálogo ser no gênero poesia, já publicamos contos, romances, crônicas e ensaios, mas numa linha que, eu diria, é dirigida a leitores com uma certa exigência de leitura. Daí a grande dificuldade de colocá-los no mercado.

Tentamos usar de criatividade na difusão desses livros, como, por exemplo, a campanha permanente "A Literatura Mora ao Lado" que leva os escritores nossos editados a instituições de ensino, escolas de ensino médio e faculdades, bem como bibliotecas e livrarias para conversar com o público e falar de sua obra. O porta voz dessa campanha é uma publicação denominada Abecês – O ABC em leitura plural, na qual resenhamos os livros recentes da Alpharrabio Edições e dialogamos com escritores fora da região. Isso representa uma tarefa hercúlea, que leva mais tempo para obter os resultados que uma grande campanha de marketing obteria em muito menos, mas que, por outro lado, vai de encontro à nossa crença de que o tempo da cultura é também o tempo da espera, da sedimentação.

Eis aí a grande contradição frente aos meios eletrônicos e de comunicação de massas que primam pela rapidez mas, também, acredito, pela inconsistência. Há uma enorme diferença entre informação – que é os que esses meios produzem – e formação, bagagem humanista, que é aquilo que visam nossas publicações.

Num mercado dominado por gigantes, empresas que estão preocupadas com metas e polpudos resultados financeiros, a sobrevivência de uma editora com as características da minha pode parecer utópica e até patética. Admito que seria muito bem vindo um retorno financeiro, inclusive, para novos investimentos, poder bancar autores novos. É nesse sentido que estamos trabalhando. Não estamos sozinhos no cenário nacional, outras editoras nanicas estão até colhendo bons frutos, visando os consumidores que buscam um diferencial na leitura. A prova de que a produção dessas pequenas editoras é hoje uma marca de qualidade, é o evento realizado no final do ano passado, no Rio de Janeiro, denominado Primavera do Livro, uma feira que reuniu cerca de 40 editoras pequenas e fez um enorme barulho e obteve um surpreendente sucesso de público, provando que, juntas, já representam uma certa força. Tanto é que essas editoras decidiram não participar da Bienal do livro deste ano, em São Paulo, para reservar energias e capital para a nova versão, em São Paulo, no próximo ano.

Quando se pensa em produção de livros, logo se pensa nas grandes editoras, conhecidas pelas obras de impacto e de referência, bem como pelo poder de fogo em bancar direitos autorais astronômicos a autores estrangeiros. É justamente nesse universo massificado que esse contigente de nanicos faz a diferença, chancelas que oferecem o não oferecido pelo lógica perversa do mercado. E acredito que há um bom potencial de público interessado nesses produtos, resta-nos apenas a descoberta dos caminhos para chegar até ele.

O impasse do já tão conhecido chavão de que livro não vende porque é caro e é caro porque não vende, precisa ser derrubado. Pequenas tiragens, sabidamente, encarecem o preço de capa. No entanto, temos procurado usar de criatividade, dentro dos recursos disponíveis, para oferecer um produto bonito e que não seja demasiado caro. A pesquisa de papéis e modos alternativos de produção, parcerias culturais, como a que mantemos com a Gráfica Bartira, de São Bernardo, que se dispõe a produzir livros com um padrão de qualidade de excelência, com tiragens que vão de 500 a 1000 exemplares, são recursos que temos utilizado para viabilizar essas edições.

Com a enorme gama de recursos de impressão disponíveis no mercado gráfico, não é mais aceitável que se edite um livro que não seja bonito. Especialmente no caso da poesia, a produção gráfica não pode ficar aquém da delicadeza do contéudo. O projeto gráfico, e isso vale para todos os gêneros de literatura, deve dialogar com o conteúdo, a capa com o miolo, para que o resultado seja satisfatório.

Fazer livros não é uma tarefa semelhante a fabricar um objeto qualquer. Cada livro publicado nos remete à idéia do registro e da memória da história do homem, que vem de tempos remotos desde o mágico gesto do homem das cavernas ao molhar suas mãos em um pigmento qualquer e deixar naquelas paredes de pedra a marca de sua presença, fixando a sua passagem e diferenciando-se dos animais, passando pelas tábuas de argila na antiga Mesopotâmia até a descoberta revolucionária da prensa de Guttenberg, quando o mundo deixou de ser uma abstração e passou para o papel o seu conhecimento acumulado, democratizando o saber.

Fazer livros, já dizia o Eclesíastes, é uma tarefa sem fim. Por assim acreditarmos, continuaremos a perseguir a utopia da página impressa, como um legado para as gerações futuras.

 

PALESTRA PROFERIDA POR DTV NA "I SEMANA DO EDITOR" – 22 a 25 de abril de 2002 na FAENAC – São Caetano do Sul e posteriormente, com algumas modificações, também lida como depoimento no "II ENCONTRO ESTADUAL DE ESCRITORES EM DOIS CÓRREGOS", Dois Córregos, SP, 15, 16 e 17 de agosto de 2003, promovido pela União Brasileira de Escritores (SP) e Prefeitura do Município de Dois Córregos).

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