DAlila Teles Veras |
Emigração,
memória e as Antes de tudo, minha palavra de gratidão ao dr. Alberto Vieira pelo honroso convite que fez com que esta poeta atravessasse o Atlântico para pisar e celebrar, uma vez mais, sua terra natal. Um honra e uma alegria estar aqui. Sou filha de um lavrador, neta de um tanoeiro, bisneta de um ferreiro, ofícios nobres imortalizados na toponímia do Funchal.
Nome de lugar onde alguém já
nasceu,
na toponímia do funchal
branco sobre negro
na rua dos tanoeiros
É de risco esse teu ofício
Florista do tecido
A vida? Será ela em ponto cheio?
Meu ofício é a palavra. Gosto que me chamem de poeta e os poemas que acabo de ler são de minha autoria. De minhas memórias também faço poesia e crônica e diário e... Tudo é palavra. Este poema fala disso:
vestígios de pegadas nas areias, / restos
d´ossos roídos e d´espinhas
a infância e a memória
vez por outra
(a menina antiga
a memória da infância O pai de meu pai, o avô de meu pai, o bisavô de meu pai eram homens do campo. Arco da Calheta é seu lugar. Ali pegaram de galho e ali permaneceram.
Saga
Ao pé dos semi-circulares montes Após esta introdução, como se viu, com licenças poéticas, tentarei cumprir a orientação do honroso convite que me foi feito, ou seja, contar sobre a História da emigração de minha família e da minha afirmação no Brasil, país onde resido desde 1957. Uma autobiografia e, desde já, peço-lhes a devida paciência e compreensão. Este testemunho, sublinho, não obedecerá a nenhum rigor cronológico. Antes, Seguirá o fluxo das lembranças que ora recuam, ora avançam no tempo que, diga-se, jamais é linear. A leitura de poemas que pontuou o início desta minha fala e daqui em diante, também servirá como uma espécie de pausa poética/ilustrativa, já que minhas memórias, transfiguradas e recriadas, foram objeto de partida para muitos poemas, em especial nos livros “Madeira: do vinho à saudade” (Funchal, 1989, Colecção Cadernos Ilha, José António Gonçalves, editor), “estranhas formas de vida”, Alpharrabio/Dobra Editorial, SP, 2013 e “solidões da memória” (Alpharrabio/Dobra, SP, 2015), uma espécie de “trilogia das raízes”. Também porque a poesia é a forma em que melhor me expresso. Pois bem... Dalila Isabel Agrela foi o nome que me deram ao nascer, aqui mesmo, no Funchal, em Santa Maria Maior, onde vivi até os 11 anos, quando embarquei com meus pais e irmãos para o Brasil. Agrela vem do Arco da Calheta, onde nasceu meu pai. Faltou o Olival materno que o machismo da época, inconsciente, acredito assim como também perdoo, não permitiu incorporar. Vem lá da Freguesia de Santa Cruz onde nasceu o meu avô, pai de minha mãe. A estes, por amor, incluí o Teles Veras brasileiro, que também possui origem remota lusitana e que uso como sobrenome literário. Meu pai, Manuel de Jesus Agrela, filho de pequenos proprietários rurais, nasceu no Arco da Calheta onde residiu e trabalhou no campo com seus pais até os 21 anos de idade, quando de lá saiu para servir o Exército, em 1941. Após o cumprimento do período obrigatório do serviço militar, cumprido em boa parte nos Açores, durante a II Guerra Mundial, retornou à Madeira em 1945. Homem de poucas letras, enfrenta, como é de se imaginar, toda sorte de dificuldades para seu próprio sustento. Não queria voltar para o campo, onde seus pais viviam, pois apaixonara-se pela minha mãe, Maria de Lourdes, uma menina nascida e residente no Funchal e era aqui que desejava também residir. Teimoso, decidiu ficar e empregou-se no comércio como empregado de mesa (no já extinto Café Riviera, na Av. Arriaga, 1 a 7 e no Café Apolo, ainda hoje em funcionamento. Em julho de 1946, nascia eu, sua primeira filha, concebida antes mesmo do casamento, decorrido em abril daquele ano, pecado inconfessável, a ser escondido a sete chaves durante décadas. Quinze meses depois de meu nascimento, ou seja, em setembro de 1947, nascia meu irmão, José Manuel. A Europa devastada daquele período pós-guerra não oferecia, como sabemos, qualquer perspectiva para os menos favorecidos. A esperança estava no novo mundo. Em fins de 1949, à busca das acenadas oportunidades de trabalho, meu pai decide embarcar para a Venezuela, onde já estavam estabelecidos irmãos, cunhados e primos. Deixou minha mãe grávida do terceiro filho (minha irmã, Maria Floripes) e partiu, com o dinheiro da passagem emprestado por um irmão e a garantia de um teto, ou melhor, um catre nos fundos do estabelecimento comercial onde foi trabalhar. Lá ficou por quase cinco anos, quando, com algum dinheiro amealhado e já proprietário de um pequeno comércio em Caracas, retornou à Madeira, adquirindo uma casa no Funchal. Retorna logo a seguir à Venezuela, novamente sozinho, onde permanece por mais um ano, com a finalidade de amealhar mais alguma coisa. Adquire um pequeno comércio no Funchal. Aparentemente, a vida, finalmente, corria serena, mas nele volta a instalar-se algum tipo de vírus insular que impele o ilhéu para além do líquido horizonte e... A ilusória placidez pouco dura. Em 1957 meu pai pede a um primo residente em São Paulo, uma “carta de chamada” para emigrar para o Brasil. Vende a casa e todos os pertences e, mesmo sob os protestos de minha mãe, embarca no paquete “Santa Maria” com destino ao Brasil (Santos), levando desta feita, a mulher e os três filhos. Era novembro e nos dezembros do resto de suas vidas, não voltariam a ver o fogo da passagem do ano no Funchal. Para a criança, tudo, no entanto, era novidade e expectativa do novo, inclusive, toda aquela azáfama da embalagem dos pertences considerados essenciais, (uma máquina de costura, alguma louça, uma espiriteira a álcool para cozinhar, algumas roupas de cama e mesa, roupas pessoais) e, agora sei, uma história de vida deixada para trás.
preparativos
As duas margens da certeza incerta
primeiro
antes da partida
bagagem
de lado a lado
haveria de ser grande e bonito
ali, na austeridade da arca Embarcamos e a partir daí, a ruptura e o inevitável apagamento de toda uma história, esta, da qual agora lembro e relato. Constituem viva lembrança minhas férias escolares no campo, mais precisamente na casa dos meus avós paternos, no Arco da Calheta, onde chegava após a “longa” viagem de “horário” ou de barco, o Gavião, se bem me lembro, a de minha preferência. Minha mãe não se adaptava aos costumes do campo. À época em que meu pai estava na Venezuela, a menina batia o pé que queria e queria e... lá ía eu, sozinha, para as férias de verão no campo. Minha mãe entregava-me a um qualquer passageiro que lhe parecesse confiável, pedindo-lhe que fizesse o favor de olhar a menina até a Calheta, onde uma das tias a aguardaria. Dos cheiros do verão, tenho presente o dos figos, das ameixas, das uvas, dos tabaibos, das anonas, mas nenhum deles supera o cheiro inesquecível do pão a assar no forno a lenha da chamada loja, cômodo no rés do chão da casa assobradada, que servia de cozinha e dispensa. Na mesa rústica da madeira junto a pipas de vinho, gaiado salgado, arcas com semilhas e batatas, comia-se em silêncio. As tardes longas à roda das tias em roda a bordar e bilhardar. Sim, na ausência de grandes acontecimentos, bilhardar era uma diversão e tanto. Além das crianças e do meu avó paterno, já velho, sempre silencioso e que jamais saiu do lugar, não me recordo da presença de outros homens ali. Esse avô, Manuel como meu pai, além de trabalhar em sua própria terra, também trabalhou a vida toda no alambique do Engenho do Arco da Calheta.
Mulheres que se refugiam do mal,
por mulheres
venezuela
as tias, viúvas de maridos
mãos para os afagos e o Do campo, guardo ainda os sons das levadas e do mar, a sensação de plena aventura ao acompanhar as tias à rega no horário aprazado, por vezes na madrugada, após bater novamente o pé pelo querer. A festa do Loreto e a participação, como mascote dançante do Grupo Folclórico da Calheta fazia parte das minhas atividades de férias. Sempre quis e sonhei dançar, mas, adulta, desaprendi. As brincadeiras nos molhos de restolho do trigo, a apanha e a pisa da uva, a prova do mosto, as idas ao moinho com a avó. Com exceção da obrigatoriedade da reza coletiva do terço antes de dormir, suprema tortura, ali havia a liberdade que a cidade negava à criança. educação pelo silêncio
Dentro das mangas do casaco os braços de
trigo,
em silêncio, desaparecia
na casa antiga, em pedras
em silêncio, celebrávamos
Do Funchal, dentre outras, está bem fixada na janela da minha memória, a escola primária Visconde Cacongo, no Bom Sucesso, pertinho da casa onde residíamos. Talvez para amenizar o medo imposto pela obediência e rígida disciplina ou, quem sabe, cometer um imperceptível ato de rebeldia pela poesia, candidatava-se a recitar Augusto Gil nas comemorações cívicas (“Batem leve, levemente, / como quem chama por mim... / Será chuva? Será gente? / Gente não é certamente / E a chuva não bate assim...”). De nada adiantou a demonstração da veia poética da apaixonada declamadora. Quando menos esperava, a implacável prof. Laurinda de Albuquerque, ergue a palmatória e aplica meia dúzia de bolos em cada uma das frágeis mãos da menina, mágoa jamais superada. O episódio foi recriado neste poema:
Fragmento
A palmatória crescia, crescia...
A austeridade daqueles tempos era quebrada com raros passeios (romarias à Festa do Monte ou à do Primeiro de Maio na Quinta do Palheiro. Lembro-me particularmente do último deles antes de embarcar para o Brasil, a festa de São Pedro, na Ribeira Brava). Vez ou outra, o gelado dominical, na Av. do Mar (hoje das Comunidades). Não havia brinquedos, além de uma ou outra boneca de pano feita pela mãe. Inventava-se e tudo servia, como bichinhos feitos com semilhas e palitos, o jogo de pedrinhas... Gostava de fabricar joeiras com meu irmão e soltá-las em dia de vento. A primeira e única boneca, comprou-a meu pai nas Canárias, onde o barco que o trouxe da Venezuela fez escala. Um prodígio, que também virou poema, escrito no dia da morte do realizador Manoel de Oliveira e a ele foi dedicado.
aniki-bóbó para o Manoel de Oliveira
na memória de encantamentos uma boneca da mesma altura da menina que a essa altura nada sabia de cinema nem quem era o senhor antónio de oliveira salazar que ordenava às crianças seguir pelos bons caminhos
veio do porto, a boneca das ilhas canárias, parada obrigatória do navio, com o pai retornado do estrangeiro
eppur si muove! (robô antes do robô) o corpo rígido, anda gira a cabeça loura fecha os olhos e chora (nada igual nas redondezas estrondoso sucesso na vizinhança)
tamanho tesouro exige cuidados e desvelos : um banho demorado exposição ao sol
de papelão pintado era feito o prodígio que pouco durou
(e esta história neo-realista sequer foi para o cinema porque uma década antes outra história com outra boneca e bem melhor contada já lá tinha ido pelas mãos de um mestre que muito entendia de poesia e costumava se hospedar na ilha onde isto se deu)
Voltemos para a nova terra, a nova vida
11 dias durou a travessia, em duras circunstâncias. No cais do porto, em Pernambuco, primeira parada no Brasil, antes de Santos, destino final, a nova terra se anunciava. O vai e vem dos estivadores em seu movimento frenético a carregar os navios. Homens muito fortes, quase todos negros, torsos desnudos e suados, carregavam inúmeras sacas de uma só vez. Ficamos ali, surpresos, a examiná-los, no seu constante ir e vir. Lembro de minha mãe, diante do assombro e gigantismo de tudo, choro incontido, a pedir para voltar. Um poema que ilustra esse momento:
chegada
Para a frente era só o inavegável Sob o clamor de um sol inabitável Sophia de Mello Breyner Andresen
onze foram os dias enjoo, sarna e tédio terceira classe paquete santa maria
da terra prometida primeiro, o recife amarelos inaugurais
aos emigrantes, o delimitado espaço do porto, aos turistas a cidade (entre)vista do cais
(aos que vinham para o trabalho ver o trabalho era o limite)
via-se : corpos gingantes, a estiva torsos negros azuis suados
e o cheiro despudorado do abacaxi a anular o resto
(o brasil tinha cheiro e era de ananás)
Em São Paulo já residiam alguns parentes e para essa cidade iriam também residir posteriormente muitos dos parentes que estavam na Venezuela. Parte do dinheiro auferido na venda do pequeno patrimônio é gasto com passagens e documentação. Dificuldades de toda ordem à chegada. Ainda que a língua fosse a mesma, o choque cultural foi inevitável. Para além da diferença abissal da paisagem e da cultura, o constrangimento de cinco pessoas diante da nova situação, ou seja, o abrigo provisório num cômodo da casa de um primo. Depois, dois quartos alugados num porão úmido, até que uma pequena casa fosse construída pelas próprias mãos de meu pai com a ajuda voluntária de alguns parentes e a contratação de um pedreiro instrutor dos voluntários.
Decorrido um ano, ainda sem trabalho estável, pois a tal “carta de chamada”, uma espécie de contrato exigido à época pelo governo brasileiro para entrada legal de emigrantes no país era, naturalmente, regida por algumas regras. Uma delas era a exigência do trabalho “no campo”, detalhe que meu pai, na ansiedade da partida, não havia percebido antes. Assim, a ele não era permitido que se estabelecesse como comerciante na cidade, conforme era seu intento.
Uma vez mais, a recusa em ir para o campo, muito lhe custou. O pouco dinheiro que sobrara após a compra do terreno e da construção da casa própria, rapidamente se esgotou com o mínimo à subsistência da família e gastos com os chamados “despachantes” que cobravam altas taxas dos emigrantes para legalizar sua situação na cidade. Documentos em mãos vazias de dinheiro, meu pai novamente é obrigado a vender sua casa, morar de aluguel para, com o valor da venda, adquirir um pequeno comércio onde trabalhou por mais de duas décadas até sua aposentadoria.
Minha mãe, peça chave dessa saga, ainda que permanentemente lamentasse o que considerava uma decisão desastrada de meu pai, ou seja, enfrentou com muita coragem as mais dramáticas situações. Modista de profissão, muito ajudou a manter a família durante o período em que meu pai não conseguia trabalho. Novamente, a contragosto, deixou o trabalho da costura para ajudar meu pai quando adquiriu um negócio, à época, chamado de “secos e molhados”, ou seja, o que na Madeira e em algumas localidades brasileiras, chama-se de “venda”. Jamais tiveram empregados. Era ela, com sua fluência em leitura e rapidez nos cálculos, que cuidava da contabilidade, da compra de mercadorias e ajudava nas vendas, além de, assim como mandava/manda o sistema do patriarcado familiar, exercer a dupla jornada de trabalho destinada às mulheres, ou seja, cuidar da casa, da alimentação e dos filhos.
E lá íamos, aclimatando-nos aos trópicos. A princípio, alvos de curiosidade, eu e meus irmãos, em poucos meses, falávamos já como brasileiros. O receio de “ser diferente” e o desejo infantil de nos “igualarmos”, inclusive para não sofrer o preconceito que, sim, existia e existe. Menos agora do que antes, é bem verdade. O português era visto como um ser pouco dotado de inteligência e alvo de muitas piadas.
Ainda que o choque cultural inicial seja inevitável, diferentemente de outros países, os portugueses no Brasil adaptam-se plenamente à terra e passam a viver como nativos. A língua, a pátria comum. A integração à vida cotidiana brasileira foi, no nosso caso, total. As dificuldades iniciais foram superadas à medida em que os mais jovens abriam caminho para a família adentrar aos hábitos e costumes da nova terra.
As datas tradicionais como Páscoa, Dias Santos, Natal, eram comemoradas, com outros familiares, tios e primos e alguns conhecidos, além dos meus pais e irmãos. Com o tempo, cada um foi formando seu próprio núcleo familiar.
Havia uma curiosidade nessas reuniões: minha mãe que fazia trovas e sabia muitas de cor tinha por hábito criar uma trova para cada ocasião. Dizia de cor ou escrevia no cartão que acompanhava o presente. Certa feita, encontrava-se doente e, na tentativa de ajuda-la a superar uma depressão que a acometia, pedi que passasse a escrever as trovas que sabia de cor. Em pouco tempo ela anotou num caderno mais de 150 trovas que organizei e publiquei num livreto, sob o título “trovas populares madeirenses”. Ela também, que gostava muito de ler, citava provérbios que eu, meus irmãos e minhas filhas sabemos até hoje de cor.
Hoje, meu núcleo familiar se resume às três filhas e suas respectivas famílias (marido e filhos). Eventualmente com meus irmãos. Em todo o meu cotidiano familiar, há um sincretismo cultural luso-brasileiro. A gastronomia madeirense é um elemento ainda muito presente nas reuniões de família que tanto eu como meus irmãos preservamos e passamos isso já para nossos descendentes.
Pelo fato de meus pais terem vivido comigo durante os seus últimos anos de vida, minhas filhas cresceram ouvindo suas histórias/memórias que são reproduzidas agora para seus filhos. Elas, inclusive, já visitaram a Madeira e Portugal Continental. Eu e meu marido temos visitado Portugal com alguma regularidade. Sempre narramos o que vimos, vivenciamos. Meus netos, ainda pequenos, já se vão acostumando com essas narrativas e já sabem muito bem contar suas respectivas origens.
O contato que tive com madeirenses residentes no Brasil, fora os de minha família, foi com pessoas da geração de meus pais e praticamente todos estão mortos. Hoje, além dos primos, em um bom número, tenho pouco ou quase nenhum contato com madeirenses no Brasil. Quanto aos parentes, não conheço praticamente nenhum parente direto de minha mãe no Brasil. Da parte de meu pai, para lá foram viver 6 dos 8 irmãos, aí incluído meu pai. Minha avó, com mais de 80 anos, já viúva, também foi para o Brasil, juntar-se aos filhos e lá morrer, pouco tempo depois. Os outros três ficaram no Arco da Calheta onde, hoje, vivem seus descendentes. No Brasil, os descendentes desses meus tios somam hoje mais de uma centena de pessoas. Todos se conhecem e se relacionam. Como era de hábito no Arco da Calheta, ainda os chamamos por “fulano” de “fulano”, ou seja, o João de Gabriela, a Maria do João, etc.
A vida modesta de meus pais foi compensada pelo êxito profissional dos três filhos. Minha mãe, na última década de sua vida, enfrentou uma doença cardíaca grave que a levaria à morte aos 77 anos. Meu pai, quatro anos mais velho, a ela sobreviveu. Faleceu faltavam poucos meses para completar 90 anos. Sempre gozou de excelente saúde e disposição. Ambos retornaram à Madeira, por apenas duas vezes, já em idade avançada.
Aos 16 anos, tendo concluído um curso prático de “Secretariado”, outro de datilografia e cursando inglês, fui trabalhar num pequeno escritório no centro da cidade de São Paulo. Dali, para a Federação das Indústrias de São Paulo, como Secretária Administrativa e, três anos após, para uma indústria de peças automobilísticas, na então efervescente cidade de São Bernardo do Campo, região metropolitana de SP. No início dos anos 60, a Indústria automobilística estava em pleno desenvolvimento, era um tempo em que havia pleno emprego, com alta demanda de vagas e, por outro lado, a capacitação dos pleiteantes a emprego era aquém do desejável. Quem possuísse bons conhecimentos de língua portuguesa, estenografia, datilografia, e, no caso de empresa estrangeira, conhecimento razoável da língua inglesa, recebia, como foi o meu caso, excelente salário. Tive uma carreira profissional exitosa, chegando a secretária executiva de Diretoria numa empresa multinacional.
A ausência de formação escolar superior não impediu a busca por conhecimento que sempre foi o meu objetivo. Não só o conhecimento instrumental, destinado ao trabalho, mas o que envolve as humanidades sempre foi e é alvo de minha curiosidade e interesse. Nessa empreitada, tive no hábito da leitura, meu maior aliado. Sou feita, portanto, do que li. Desde muito cedo descobri minha vocação para as letras. Herdei de minha mãe o gosto pela leitura e sempre contei com seu incentivo. Não me lembro exatamente quando, mas desde sempre pratiquei a escrita criativa, colaborando, a princípio, para jornais e revistas escolares e corporativos e, posteriormente, as publicações literárias. Assinei coluna em um jornal diário por vários anos. Publiquei meu primeiro livro aos 36 anos, em 1982. Sou autora de mais de duas dezenas de livros, nos gêneros poesia, ensaio, crônica e diário literário. Dedico-me também há mais de três décadas ao ativismo e à promoção cultural. Sou uma escritora brasileira que nasceu em Portugal. As raízes pátrias permanecem a fustigar a memória que constantemente recrio na língua da poesia.
Em abril de 1971, 25 anos incompletos, empreendo uma viagem de retorno à terra natal, sozinha, refazendo, pelo ar, o trajeto que, menina, fizera por mar, 14 anos antes. Durante esse período, a comunicação com os parentes que aqui ficaram, foi mantida. Talvez por um desejo latente atávico de nos manter conectados com as raízes primeiras das quais jamais me apartei. Nessa primeira visita, encontrei vivos, meu avô materno e seus dois filhos, meus tios Alice e João Elmano, que residam no Funchal. No Arco da Calheta, dois tios, João e Gabriela, e seus descendentes, todos, tios e primos, com suas respectivas proles, que sempre me acolheram com afeto e viva simpatia.
Durante aqueles primeiros 14 anos de ausência da pátria primeira, e por muitos outros, até a chegada da comunicação virtual e dos celulares, as cartas, manuscritas, com aqueles adoráveis envelopes adornados com bandeiras com as cores locais, cruzavam o atlântico. Falavam do cotidiano, da saúde, do emprego, da situação financeira, dos que emigraram e retornaram, dos que não mais retornaram, enfim. Guardo uma boa quantidade delas comigo e noto que havia sempre muitas queixas. Pouco se falava de alegrias.
Fotos, antes do advento da fotografia digital eram mais raras, mas vez ou outra, eram trocadas. Já a música, com exceção do folclore que víamos muito esporadicamente em instituições portuguesas e madeirenses (Casa da Ilha da Madeira de SP e Casa de Portugal), era mais rara. Adulta, me interessei pelo fado, mais precisamente por Amália Rodrigues e comecei a buscar e pesquisar o que podia dela e sobre ela. Desse interesse nasceu o livro “estranhas formas de vida”, composto por poemas que dialogam com as letras de fado. A literatura portuguesa, desde o já citado Augusto Gil da infância também sempre me interessou como fruição e objeto de estudos espontâneos.
A memória dessas cartas foi transformada neste poema:
posta restante
Há muito tempo, sim, que não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias. Carlos Drummond de Andrade
tempo de ruas sem nome casas sem número e pregão semanal
no modesto prédio dos correios um a um, os envelopes passavam às mãos dos destinatários a chama da saudade atiçada pelas bandeirinhas coloridas e a frustrante incapacidade na decifração dos códigos envelopados
a menina (verdes letras) aceitava ela também aos sobressaltos a incumbência da leitura das missivas garranchos, invariavelmente iniciados com esta saudação formal
rogo a deus que estas mal traçadas linhas te encontrem e a todos os teus de boa e feliz saúde que a minha é sofrível graças a deus
(em sua atávica melancolia o insular rejeita a euforia - entregar-se ao sofrer é sua forma de estar no mundo, fadário)
em lamúrias e promessas de regresso prosseguia a ladainha (apaziguamento da culpa pela ausência)
na impossibilidade da elucidação das epístolas cabia à menina inventar substituir a palavra oculta por verossímeis notícias (para sempre, fatalizada )
A minha chegada à Madeira naquele já distante ano de 1971 foi recebida com muita surpresa e curiosidade. Fui uma das primeiras a retornar. Disse-me um primo, aqui há uns poucos anos, que o Arco da Calheta ficou em polvorosa quando pela primeira vez ali chegou uma mulher (eu), a conduzir um automóvel.
Cito aqui alguns fragmentos, sem retoque, das anotações, a lápis, no já esfacelado caderno de viagem da jovem de há exatos 45 anos. Se o faço é por acreditar que alguns dos aspectos ali anotados, fazem parte de uma Ilha que já vai a desaparecer e talvez possam contribuir para alguma reflexão:
“Cheguei. Há pouco não passava de um simples sonho de uma menina que saiu com a família para um país distante, prometendo a sim mesma um dia voltar. (...) O sonho foi transformado em determinação. Os tostões amealhados e, finalmente, a passagem comprada a prestação e o embarque. Emoção de rever o avô velhinho, tios, primas, todos como os tinha na imaginação, na lembrança, no coração.” (...) Recusam-se a tratar-me como uma portuguesa que retorna, mas sim como uma brasileira que os visita. Minha forma de falar já não os convence. (...) Qual das pátrias será a verdadeira? (...) Após 5 dias instalada na casa da tia no Funchal, muitos lugares visitados e o encanto de percorrer as ruas estreitinhas com seus nomes pitorescos, Caminho do Palheiro, Rua da Levada, Rua do Cabeço do Ferro, Ladeira da Rochinha... recebo cartas do Brasil. Que alegria! Uma delas diz: “tua segunda Pátria tem uma noite amena e brilhante, a luz cheia apontou após um dia escuro e repleto de chuvas. S.Paulo chorava a partida daquela que é sua filha”. A confusão aumenta. brasileira ou portuguesa? (..) O cenário mudou. Os raios de sol vêm iluminar meu quarto que mais parece ter saído de um filme antigo e já visto: um catre de ferro, um baú de madeira com uma toalha muito branca e rendada por cima, um lavatório de louça pintada, sobre uma armação de ferro e sabonete lux. Um ar perfumado envolve este ambiente. Estou no campo, casa do tio João e tia Gabriela. A recepção não podia ser melhor. Ajudo a fazer pão, que é degustado já na espetada do almoço. À tarde, festa de batizado do 6° filho da prima Celeste, cabrito, frangos, batatas, vinho, como não poderia deixar de ser (...) Meu tio trouxe os bolsos cheios de caramujos e pediu à tia prepara-los para mim. Os garotos trazem-me cana-de-açúcar descascada, gestos que me comovem até as lágrimas. Todos querem conhecer e agradar a “prima do Brasil”. Assisto encantava, à festa do Divino que, com variantes, também é praticada no Brasil. Depois da missa da manhã, um grupo constituído por 3 músicos (um violão, um violino e um machete – instrumento típico), 2 meninas (saloias) vestidas com trajes típicos e chapéus enfeitados com inúmeras correntes de ouro, anéis e pulseiras. Este grupo carrega uma coroa que representa o “Divino” e duas bandeiras vermelhas que são levadas por outros homens vestidos com coletes vermelhos. Visitam todas as casas do lugar, onde lhes são servidos doces e bebidas e doações para a igreja. Em troca, tocam e cantam para os anfitriões. (...) Após 5 dias no campo, enfrentar os 50 km de curvas até o Funchal. O trajeto foi feito em duas horas. O que impressiona aqui, para quem já se acostumou à loucura de uma metrópole como São Paulo, é a falta de pressa. O comércio abre às 9h, fecha da 1 às 3h para o almoço e os carros trafegam sem qualquer vestígio de neurose. O Dia do Trabalho é muito festejado cá na Ilha, com arraiais e romarias. Fomos ao Monte. (...). Já visitei muitas freguesias. Quando passei pela Encumeada, local no meio da Ilha de onde pode se avistar o mar dos dois lados, como se estivéssemos flutuando no meio do oceano, lembrei-me de uma quadra que minha mãe gosta de citar: “Este ano vou ao Monte / Pro ano à Ponta Delgada / Só pelo prazer que tenho / De passar na Encumeada”
Em 1972, aos 26 anos, casei-me com o então recém-formado advogado Valdecirio Teles Veras, que viera do Piauí, seu estado natal, no Nordeste, estudar em SP onde se radicou. Hoje, é cidadão português, por direitos legalmente adquiridos e afinidades eletivas. É meu companheiro eterno de incontáveis viagens e meu incentivador em todos os quesitos da existência. Como é tradição, hoje também aqui presente. Temos 3 filhas, Carolina, Isabela e Alice, e quatro netos, Filipe, André, Murilo e Iara. Todas as filhas com formação universitária e carreiras consolidadas.
Perguntam-me se me considero uma pessoa de sucesso e, como vejo essa palavra tão banalizada, muito ligada ao espetáculo midiático, prefiro substitui-la por “êxito. Tive, sim, sorte e, sem falsa modéstia, alguns êxitos, resultantes de muito trabalho e empenho.
A ausência de formação superior formal não me impediu a busca por conhecimento que sempre foi o meu objetivo. Não só o conhecimento instrumental, destinado ao trabalho, mas o referente às humanidades, sempre foi e é alvo de minha curiosidade e interesse. Nessa empreitada, tive no hábito da leitura, meu maior aliado. Sou feita, portanto, do que li. Desde muito cedo descobri minha vocação para as letras. Colaborei em publicações literárias. Assinei coluna em um jornal diário por vários anos. Publiquei meu primeiro livro aos 36 anos. Sou autora de mais de duas dezenas de livros, nos gêneros poesia, ensaio, crônica e diário literário. Dedico-me também há mais de três décadas ao ativismo e à promoção cultural. Por essa minha atuação pública, em 2004, a Câmara Municipal de minha cidade outorgou-me o título de cidadã honorária. Há 4 anos integro, a convite, o Comitê de Extensão Universitária da Universidade Federal do ABC, assim como integrei em outras ocasiões comitês e comissões em outras universidades.
Não emigrei, como já se viu, por vontade própria, pois era muito criança para isso. Entretanto, jamais me passou pela ideia emigrar para qualquer lugar que fosse, nem mesmo para a minha pátria primeira, Portugal. Já criei raízes no Brasil, país que aprendi a amar, onde adquiri os direitos políticos, com a chamada dupla cidadania.
Neste quesito, o da cidadania, caberia também alguns apontamentos:
Em 2002, após 45 anos residindo no Brasil, optei por requerer a chamada dupla cidadania. Vários motivos levaram-me a tomar tal decisão: havia já componentes de “brasilidade” que incluía minha participação ativa e “militante” na vida cultural e política de minha cidade e região. A burocracia oficial fazia questão de me lembrar da condição de estrangeira, ou seja, a renovação periódica do meu documento brasileiro de identidade. As longas e demoradas filas dos guichês reservados aos “estrangeiros” nos aeroportos brasileiros. "Estrangeiro aqui como em toda a parte", habitante de "pátria incerta" lembrava-me o nosso Poeta. Nem de lá, nem de cá e, neste caso, a língua me servia apenas de teto, faltava-me verdadeiramente uma pátria, na qual pudesse exercer efetivamente minha cidadania. Após um ano de certidões e burocracias consulares, finalmente obtenho, em 2002, o “certificado de igualdade e de outorga do gozo de direitos políticos”, sem abrir mão da minha naturalidade portuguesa. Ato contínuo, cuidei de tirar o meu “título de eleitor” para, enfim, exercer minha cidadania (quase) plena. Para minha decepção, sou informada de que a obtenção da dupla cidadania não me concedia o direito a um passaporte brasileiro. Portugal concede passaporte português aos brasileiros que a requerem e o Brasil não faz o mesmo em relação aos portugueses. A contrapartida da “dupla cidadania” não é verdadeira. Jamais me conformei com isso. Munida de meu passaporte português, do qual, diga-se, muito me orgulho, passei a me dirigir apenas às filas destinadas a brasileiros nos aeroportos do Brasil e, ainda com alguns problemas, jamais fui barrada. Finalmente, há muito pouco tempo decidiram que os cidadãos com dupla cidadania entrariam no Brasil pela porta da frente. Mas ainda não possuo o passaporte brasileiro, cidadã pela metade, eternamente dividida. A ida para o Brasil representou um sonho de meu pai. O sonho de um Eldorado que verdadeiramente não existia.
A propósito desta minha pequena história que é a de tantos, e já encerrando, gostaria de lembrar que vivemos tempos difíceis e violentos, absurdos tempos de intolerâncias e xenofobias planetárias. Em regime de urgência, precisamos aprender a conviver com alteridades, exercer a fraternidade com os que vieram de longe por contingências as mais diversas e, muitas vezes, dramáticas. Os portugueses, e os madeirenses em particular, por essa incalculável diáspora pelo mundo, mais do que ninguém e mais do que nunca, precisam acolher aqueles que aqui chegam à busca das mesmas oportunidades que os seus antepassados igualmente foram buscar em outros tempos e lugares.
Encerro com este poema, que, sinteticamente, talvez diga mais de mim do que todo este longo e maçante depoimento. O poema faz parte do meu livro “solidões da memória”, recentemente publicado no Brasil, inteiramente composto por poemas que evocam minha infância na Madeira, a ruptura da travessia e o olhar crítico no retorno à ilha, tudo aquilo que aqui evoquei.
Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Carlos Drummond de
Andrade alguns anos vivi na madeira principalmente nasci na madeira por isso sou melancólica, teimosa: urze de nascença, em luta frente às intempéries (do solo, do vento e das vagas marítimas) alma em permanente desassossegar
da madeira nada de material veio comigo e não há nada que eu possa ofertar mas da madeira vem este ar atrevido a língua maldicente e áspera e o hábito de tudo reclamar atavismos que a consciência, por vezes rejeita
a madeira não é apenas fotografias é a memória real dos precipícios e das vertigens encordoamento do que não parecia lembrado mas é a memória do que não foi mas poderia e sequer dói
Funchal, 10.11.2016
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