DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 A Criação literária como matéria de memória e esquecimento (*)      

 

     Instigada pelo tema, fui buscar em alguns grandes escritores, pistas para uma reflexão sobre a questão das relações  entre literatura e memória.

     O escritor português José Saramago, diz que “todas as memórias são falsas”. A descrição de um sonho “transforma esse sonho em outra coisa. Às vezes, o sonho pode ser inefável, ou seja, não pode ser descrito. O que existe são memórias de memórias, vestígios de outras memórias, memória da memória primordial. Vivemos no meio de nossa memória, como um caleidoscópio, os pedacinhos são os mesmos, mas mudam”.

     Já o poeta uruguaio Mário Benedetti, em seu livro “El Olvido está Lleno de Memória”,  reafirma que não há esquecimento, o esquecimento está cheio de memória. Vale a pena conferir o que esse grande poeta latino-americano diz a respeito, no poema Esse Grande Simulacro, do livro citado.

(....) 

O esquecimento está tão cheio de memória
que às vezes não cabem as lembranças
e os rancores precisam ser jogados fora
no fundo o esquecimento é um grande simulacro
ninguém sabe nem pode / ainda que queira / esquecer
um grande simulacro abarrotado de fantasmas
esses romeiros que peregrinam pelo esquecimento
como se fosse o caminho de santiago
 

no dia ou noite em que o esquecimento estale
salte em pedaços ou crepite /
as recordações atrozes e as de maravilhamento
quebrarão as trancas de fogo
arrastarão afinal a verdade pelo mundo
e essa verdade será a de que não há esquecimento (**) 

     Entre a tese de Saramago (de que todas as memórias são falsas) e a de Benedetti (de que não existe esquecimento e, portanto, o que existe, na verdade, é a memória), fico com as duas e fico também com a de outros, como a nossa Nélida Piñon , quando diz que “a memória, ao contrário do que as pessoas pensam, não recorda. Ela vai interpretar o que se viveu ou o que se pensa ter recordado. O homem recorda simplesmente o que a memória quer. Ela é autônoma em relação a nós”.

     É nesse sentido que compartilho igualmente da preocupação do escritor/pensador italiano  Umberto Eco, quando, em entrevista recente,  sobre o que ele define como a crise atual da memória, compara a Internet a Funes, um personagem de Borges que se lembrava de cada folha de cada uma das árvores que viu em sua vida, de cada letra de cada frase de todos os livros que leu e, por não possuir a capacidade de filtrar, não podia agir nem se mexer e uma das funções da memória, seja individual ou coletiva, não é somente reter, mas também filtrar. Ainda de acordo com Eco, até o presente, a sociedade filtrava para nós, por intermédio dos manuais e das enciclopédias. Com a Internet, toda a informação possível, mesmo a menos pertinente, está lá, à nossa disposição e então, pergunta-se: quem filtra? ampliamos a nossa capacidade de estocagem da memória, mas não encontramos ainda o novo parâmetro de filtragem, conclui o pensador.

     São pistas que nos levam a acreditar que a memória não pode ser lógica  (o esquecimento e a retenção são acidentais), ela está ali, permanece em compartimentos fragmentados, escaninhos secretos, cuidadosamente selecionados pelo mistério dos critérios da mente. O fato real, mas já sendo outra coisa, quando escrito ou verbalizado.

     Quanto a mim, apesar de sempre escrever partindo do real, recolhendo fragmentos cotidianos como cernes de um poema ou de uma crônica, não me preocupo, no momento da criação literária, se o seu resultado vai corresponder a esse fato. Naquele momento preocupa-me utilizar do melhor da linguagem ao meu alcance para registrar esses fragmentos da memória vista, ouvida, sentida, vivenciada e transformá-los em expressão literária. É memória, sim, e é real, mas outra coisa, literatura.

      Nesse sentido, uma das experiências mais interessantes que vivenciei foi o livro Madeira: do Vinho à Saudade. Após uma viagem à Ilha da Madeira, onde nasci, os cheiros e a presença quase física da infância foram decisivos para a idéia do livro. Vali-me da recordação, daquilo a que remete a própria etimologia da palavra, ou seja, “re-cordis”, passar de novo pelo coração, uma vez que percebi que a memória, como afirma Saramago, pode ser realmente falsa. A distância cobriu de névoa os dados retidos e transformou-os em matéria de poesia.. Ainda assim, foram esses dados, “memória da memória” os embriões para os poemas que compõem o livro, acrescidos de uma pesquisa de dados históricos, geográficos e culturais. 

     Não é possível precisar em que tempo realizar-se-ia o encontro do universo simbólico do sonho ou do desejo com o visto e retido na memória. Mas isso não importa a quem escreve; a arte transcende as questões teóricas e suposições de crítica genética. Quando o escritor consegue registrar o seu tempo, ultrapassando-o, realiza a verdadeira literatura.

     Foi assim que alguns poetas, ao escreverem sobre o mito fundador de suas respectivas nações, transformaram-se em símbolos de identidades nacionais e da própria língua, Homero e Virgílio, antes de Cristo, e muitos da era cristã, como Camões e Dante.

     Mas também é certo que não podemos nos esquecer do que provavelmente tenha ficado à margem dessa memória registrada com gênio, mas nem por isso menos importante. Falo do que as enciclopédias não registraram, dos escritores “menores”, das tradições orais - das quais muitos desses gênios se valeram para compor suas próprias odisséias – memórias, falsas ou não, marcas da passagem do homem pela terra, fragmentos desse grande caleidoscópio planetário.

     São dessas memórias perdidas que tenho me ocupado ao recolher os poemas e outras manifestações literárias  ao longo dos quase 30 anos em que vivo na região do Grande ABC. São esses papeizinhos avulsos, cartões, convites, recortes, que enchem pastas e mais pastas, folhetos e publicações alternativas, que vão do mimeógrafo à sofisticação gráfica atual, nonadas (?) que fui juntando e que hoje fazem parte do acervo do ABCs Núcleo Alpharrabio de Referência e Memória, que junto a algumas centenas de livros – obras de autores da região e sobre a região -  representam uma parte significativa da memória literária local, acervo que, desde 1997, está aberto ao público, numa sala especial nas dependências da Livraria Alpharrabio, em Santo André.  Além de acumular esse acervo, tenho realizado entrevistas com escritores e pesquisas na imprensa local, desde o seu início, em 1904, sendo que já publiquei alguns resultados dessas pesquisas em revistas e, espero, uma dia poder amplia-las.

     Outro fato emblemático da preocupação com a memória regional hoje é que, desde o dia 1º de janeiro deste ano (1999), mais de uma dezena de pessoas, todas residentes no Grande ABC, estão empenhadas em escrever o seu diário, registrando, dia a dia, o último dos anos 90, num inusitado rito de passagem de década, século e milênio. O pai da idéia dos diários é o escritor Antonio Possidonio Sampaio, que estará participando a mesa de amanhã neste Seminário e deverá discorrer melhor do que sobre o tema. Mesmo assim, gostaria de ressaltar, entusiasta que sou da idéia e igualmente mpenhada nesse registro, que este projeto representa um grande desafio, uma vez que uma de suas premissas básicas é de que não seja um diário intimista, mas um olhar sobre a região, sempre com a preocupação de um tratamento literário, naturalmente, a critério de cada autor. Isto não significa escrever apenas sobre os grandes fatos, mas, e principalmente, sobre as miudezas do cotidiano. O fato desses diários estarem a ser escritos por pessoas atuantes em áreas diferentes 9música, dramaturgia, jornalismo, arte e educação) confere ao projeto um caráter de múltiplos significados e significantes. Aguardemos os resultados.

     Há escritores que acham o bastante escrever, faço parte do time que entende que o papel do escritor deve ir além do papel, e vou fazendo a minha parte. Pensar a cidade e penetrar na sua memória, pode ser um exercício tão apaixonante quanto escrever ou ler um bom livro de poesia.

 

Bibliografia:

-  “El olvido está lleno de memoria”, Mario Benedetti, Seix Barral – Biblioteca Mario Benedetti, Argentina, 1995 (trechos com tradução de Dalila Teles Veras)

-  Jornal Folha de São Paulo (“Eco – O bug da memória - entrevista de Umberto Eco), 8.8.99

-   Jornal Folha de São Paulo (“Interpretações da Memória”, com Nélida Piñon”), 8.8.99)

-  Entrevista de Saramago (programa “Roda Viva”, TV Cultura) (s/d)

 

(*)  texto-roteiro para debate no Seminário Literatura & Memória, realizado no Auditório do teatro Municipal de Santo André, nos dias 7 e 8 de outubro de 1999, promovido pela Prefeitura Municipal de Santo André

(**) tradução Dalila Teles Veras 

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