DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 JOAQUIM DE MONTEZUMA DE CARVALHO:

EMBAIXADOR CULTURAL  

“O calendário marca o começo de outono, mas o sol ainda brilha forte em Lisboa. Numa das ruas estreitas de Alfama, a tarde escorre morna entre bolos de Trás-os-Montes, vinho de Cantanhede, exemplares de livros raros, manuscritos do Séc. XVI, conversas e conversas sobre tudo e, sobretudo, literatura e Brasil e Portugal.

O homenzarrão afável e bem-falante, no papel de anfitrião, coadjuvado por D. Julinha, nem de longe faz lembrar a figura estereotipada que eventualmente se faria de um intelectual de sua estirpe”.

Assim iniciei um texto publicado no jornal “O Escritor ” nº 43, da União Brasileira de Escritores, SP, em novembro de 1986. Falava eu do ilustre Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho, com quem me encontrara em Lisboa, em setembro daquele mesmo ano , exatamente um ano após iniciada uma intensa troca de correspondência (e amizade ). A seguir ao texto, vinha transcrita uma entrevista que conduzi e gravei durante nosso encontro naquela tarde em Alfama, na qual entre inúmeros assuntos abordados, o tema do acordo ortográfico, que à época começava a ser discutido e sobre o qual assim ele se manifestou: “Não há nenhuma necessidade , uma vez que uma língua e sua expressão escrita é o produto natural do povo e cada povo tem maneiras particulares de ser que diferem de outro, mesmo que fale a mesma língua . Acaba sendo subserviência a um padrão comum . A diversidade é o encanto do mundo. Por mais acordos ortográficos de uniformidade que se façam, não é isso que leva a uma unidade nem a uma maior aproximação entre os povos . Isso são pormenores, é mais uma ficção dos filólogos”. “Ficção que, diga-se, passadas duas décadas , regulamentada e assinada, passa a ter valor de lei em oito países . A língua era e é uma , as particularidades e riquezas culturais regionais permanecerão mutantes, é verdade, mas soberanas em sua alteridade, como é sabido.

A primeira carta que encontro em meu arquivo, assinada por ele, é datada de setembro de 1985. Lá se foram, portanto, 23 anos, durante os quais, dezenas e dezenas de envelopes cruzaram o Atlântico. Vindas de , a princípio, as cartas eram datilografadas em folhas de papel de seda azul, frente e verso totalmente preenchidos, sem nenhuma margem nem espaço entre linhas, invariavelmente com duas observações ao final: “não reli a carta , desculpe erros ... ” e “ agradeço me guarde os selitos desta e obrigado pelos outros”. Estas rápidas observações enunciam duas facetas do emissor : o colecionador de selos (para deixá-los ao Quinzinho, seu filho, também entusiasta colecionador e hoje brilhante advogado criminalista, como o pai ) e a paixão e a prática da epistolografia. Não havia tempo para emendar, reler o escrito , eram muitas as missivas a escrever para gentes do mundo todo . Montezuma está para Portugal como Mário de Andrade esteve para o Brasil, no afã de interligar pessoas, idéias, informações e saberes. Mesmo com a sua reconhecida erudição, não fazia julgamento de valores literários entre os seus correspondentes , que tanto poderiam ser figuras centrais das literaturas brasileira, portuguesa, das Américas ou da África, como Octavio Paz, Julio Cortazar, Manuel Bandeira e muitos outros da mesma estatura, quanto escritores em início de carreira em busca de interlocução, como foi o meu caso, que ele generosamente recebia e respondia com o mesmo empenho e generosidade.

Nos intervalos destas, outras cartas me chegaram, em papel pautado, escritas à mão com caneta-tinteiro de tinta preta , numa letra legível, mas visivelmente apressada. Após aquele memorável encontro de setembro de 1986, um sábado (“que para todos nós, irremediavelmente saudosistas, se tornou fixo no calendário da amizade”, no dizer do querido Mestre e Amigo), as missivas que se dirigiam à “ amiga Dalila” passaram a ser dirigidas aos “estimados amigos Dalila e Valdecirio”, ou ora a um, ora a outro , dependendo do assunto em tela (a Valdecirio, assuntos de cunho mais político e relacionados com as questões do direito, e a Dalila, assuntos mais literários e relacionados à Madeira , outras ilhas e seus emigrantes remetendo à terra natal da destinatária e sua condição de emigrante). 

Com o tempo e a vulgarização da reprodução xerográfica, as cartas foram sendo substituídas por recados (por vezes, verdadeiras cartas) escritos à mão, em letra cada vez mais miúda, no verso e nas margens das cópias dos recortes dos incontáveis artigos e ensaios que Montezuma publicava com admirável regularidade em jornais e revistas. A Biblioteca do Exército e seus ricos e raríssimos títulos, bem ali ao lado de sua residência, era, no seu próprio dizer , uma extensão de sua casa, onde passava horas a manusear alfarrábios para anotações em suas pesquisas (“Leio mais do que vivo , porque em mim ler é que é a vida - o saber mais do que o fruto das meras sensações”) Junto aos artigos, também eram remetidas reproduções de páginas curiosas e/ ou históricas, copiadas dos volumes pesquisados, no desejo de compartilhar com mais gente suas descobertas. Via de regra, as observações à margem dessas páginas representavam verdadeiros novos artigos.

Os antigos envelopes ornados de bandeirinhas também foram substituídos por envelopes maiores, de papel craft (pardo), a fim de poder embalar o cada vez mais volumoso conteúdo que, pelo estonteante volume de informações, necessitava de alguns dias para digerir e assimilar.

Assinale-se que no investigador incansável, no crítico e ensaísta combativo (“tudo se aperfeiçoa com a crítica e nela há algo de divino, Deus não quer as coisas moles”), havia sempre a marca e a revelação do extraordinário humanista. “Só pelo diálogo se gera a fraternidade”, dizia, colocando-nos em contato com escritores e intelectuais daqui e d´além, tarefa que exercia como verdadeiro sacerdócio, sem que religioso o fosse (“o melhor mundo é amizade e a cultura quando vem de braço dado com a amizade”). Foi por seu intermédio que me foram apresentadas figuras extraordinárias do mundo das letras, com quem mantive correspondência.

Em abril de 2007, quando eu e Valdecirio o visitamos, naquela mesma casa do primeiro encontro em 1986, num terceiro andar da Rua dos Remédios, em Alfama, o velho guerreiro recuperava-se de uma cirurgia e já se mostrava cansado, com a sempre zelosa esposa Julinha à sua volta (“que cuida de mim como um menino”).

Entregou-nos em mãos um desses envelopes, recheadíssimo de recortes e anotações manuscritas, que, pela debilidade física, não tinha ainda conseguido postar. Em setembro, o carteiro entrega, em Santo André, um envelope com cópias de recortes publicados entre abril e agosto daquele mesmo ano. Dentre eles, um desenho antigo de uma ilha, encimado com o título “O assento das utopias...“ e um texto, ambos de seu próprio punho: esta é a imagem de uma ilha , de uma insula... O mar à volta dá-lhe independência . Um barco à vela, guloso, quer aportar ... É que nas ilhas, lugares desinfestados, têm situado a Sede térrea das utopias, a principal a de Thomas More, A Utopia, bem ilhada, bem insular no seu teritório livre e independente ... Podemos, devemos configurar qualquer utopia como uma força desejada de ilhas, de perfilhar um lugar diferente e de melhor respiração colectiva. Desde o Paraíso das religiões, o Nirvana, a República de Platão, a insula Barataria do Quixote de Cervantes, as visões purificadas de Bacon, Campanella, Karl Marx, certas heresias às três religiões principais, etc., tudo são faces da utopia ao ver-se no espelho da história, tudo tem ar de família... daí que sempre actuais na nossa palpitação, por perfeição e felicidade . Lisboa, 13 Agosto, 2007, Joaquim de Montezuma de Carvalho”. Foi o último envelope pardo e volumoso , recheado com o pensamento e as letras (marcas de seu próprio corpo e espírito) do generoso pensador português que chegou a Santo André, São Paulo.

Em janeiro de 2008, novamente em Lisboa, telefonamos para a casa do amigo Montezuma, como sempre fazíamos quando por aquela cidade passávamos e disse-nos dona Julinha que ele estava gravemente enfermo e não sabia se teria forças para nos atender . Alguns segundos depois, cheguei a ouvir a sua voz a dizer : - estou... e a seguir, um baque surdo.  Liguei novamente e, chorosa, Julinha nos disse que o aparelho havia caído das mãos dele e que, fraco, depressivo e completamente desanimado pela limitação física, desistiu da conversa. Não conseguimos vê-lo nem falar-lhe. O Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho , que no dia 21 de novembro deste ano de 2008 completaria 80 anos,  viria a falecer no dia 06 de março último (uma tarja negra e triste no calendário da amizade e a lembrança dolorosa de uma voz cansada a dizer: “estou”).

Uma ligeira comunicação como esta jamais daria conta de registrar quem foi e aquilo que fez realmente o Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho. Haveríamos de escrever um livro, uma completa biografia, como realmente bem o mereceria. Na impossibilidade disso (e na esperança que algum dia alguém venha a fazê-lo), resignamo-nos a esta breve notícia:

Joaquim de Montezuma de Carvalho (Coimbra 1928 – Lisboa 2008), licenciado em Direito, expatriou-se para Angola e Moçambique onde exerceu funções nos registros e na magistratura ( Nova Lisboa, Inhambane e Lourenço Marques) até 6 de Abril de 1976, ano em que retorna a Portugal, quando passa a exercer a advocacia em Lisboa. Iniciou sua carreira de escritor e de divulgador da cultura portuguesa em 1951, com um livro de homenagem a Teixeira de Pascoaes. Em 1958, ano da morte de seu pai, Joaquim de Carvalho, importante figura da cultura do seu tempo , organizou dois livros em sua honra . Fundou, na Figueira da Foz , em 1959, a Biblioteca-Museu “Joaquim de Carvalho ” e a Sala “Joaquim de Carvalho ligadas à Biblioteca Municipal “Calouste Gulbekian”, que conta com um notável acervo de milhares de volumes brasileiros ( tudo o que recebia do Brasil encaminhava para ). Esse acervo , que começou a ser coletado por seu pai e por João de Barros , é hoje em volume e qualidade o maior desse gênero em Portugal, incluindo também a Seção Voz Viva, com depoimentos de grandes escritores brasileiros.

Em 1963 fez parte do júri internacional que atribuiu ao mexicano Octavio Paz o Grand Prix de Poésie (prêmio belga). Membro de The Hispanic Society of America (New York); Convidado do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana (Universidade de Pittsburg, USA) e do Primeiro Congresso de Literatura Iberoamericana da Bienal de São Paulo, 1970. Em 1971 foi-lhe outorgado o prêmio mexicano José Vasconcelo, do México, que também distinguiu personalidades como Léon Felipe, Jorge Luís Borges, Gilberto Freyre, entre outros. Figuras como Miguel Angel Astúrias, César Tiempo, Demetrio Aguillera Malta, comentaram o seu labor cultural e internacionalista. Por ser autor de uma vasta bibliografia consagrada às culturas portuguesa e hispânica, foi designado, em 1999, Cavaleiro da Ordem de S. Eugénio de Trebizonde – Espanha.

É autor de um trabalho sobre a literatura brasileira no século XX, incluído na obra francesa Ecrivains Contemporains, Ed. Mazenod, Paris, traduzida na antiga União Soviética, Espanha, EUA e outros países. Quando de sua estada na África exercendo a magistratura, organizou a monumental obra Panorama das Literaturas das Américas – de 1900 a 1950, em 4 volumes, publicada em Angola, com o apoio do Município de Nova Lisboa. Esta obra traz ensaios assinados por nomes representativos das letras desses países como Manuel Bandeira e Wilson Martins, do Brasil e é apresentada por José A. Mora, Secretário Geral da OEA à época. Sobre essa obra, assim se manifestou Carlos Drummond de Andrade numa crônica, referindo-se ao recebimento do terceiro volume: “nem parece esforço de um individuo, mas de uma universidade. O primeiro volume falava ampla e autorizadamente das letras brasileiras, e é agradável ter tudo isso editado por uma câmara municipal de Angola, a demonstrar menos o mundo pequeno do que o mundo desejoso de unidade, a procurá-la através da compreensão, da simpatia, e não por meio de mísseis e físseis metidos a argumentos diplomáticos”.

Curiosamente, centenas de seus artigos e ensaios abordando literatura, filosofia, sociologia e história, foram publicados no estrangeiro. Portugal, fica, assim, a lhe dever homenagens e maior reconhecimento. No Brasil, colaborou com os jornais O Estado de São Paulo e Tribuna de Santos, nas revistas Expoente, Comentário, Kriterion, Minas Gerais, Jornal de Letras, Ita-Humanidades, Letras de Limeira, Revista Brasileira de Filosofia e Revista de Letra . Na revista Relligione Oggi (Roma); na Revista Interamericana de Bibliografia (Washington). Nas revistas do México Nort, Vida Universitaria, Sembradores de Amistad, Comunidad, Nivel e Humanitas. No diário El Universal ( Equador ); na revista Humboldt (Alemanha); Repertorio Latinoamericano (Buenos Aires), etc. Em Portugal, colaborou, entre outros, no semanário O Figueirense ( Figueira da Foz ), O Primeiro de Janeiro (Porto ), o Diário dos Açores ( Ponta Delgada, Arquipélago dos Açores) e o Correio da Manhã, (Lisboa). Desses numerosos ensaios, muitos acabaram publicados em livros , alguns deles também fora de seu país. Dentre eles , destaco o polêmico Sor Juana Inés de la Cruz e o Padre António Vieira – ou a disputa sobre as finezas de Jesus Cristo , trabalho publicado originalmente em castelhano, no livro coletivo Homenaje a Fredo Arias de la Canal (Cambridge, Mass. USA, 1997) que teve a sua apresentação em sessão de entrega do homenageado na Universidade De Harvard, e posteriormente publicado em português, em Lisboa, patrocinado pela Frente de Afirmación Hispanista, A. C., México, em 1998 (Instituição que vem reunindo e publicando estudos e as obras de Sor Juana Inés e da qual Fredo Arias de la Canal era, à época, Presidente ).

Aqui destacamos mais detalhadamente essa obra, não só por tratar-se de uma raridade bibliográfica (foi publicada numa pequena tiragem e com precária distribuição), mas também pela oportunidade deste Colóquio que evoca e celebra o quartocentenário do grande pregador e intelectual luso-brasileiro Padre António Vieira.

Diz Montezuma, num texto publicado na imprensa antes da publicação desse livro: “explico (nesse ensaio ) à novidade que é esta monja jerónima ter rebatido os argumentos do jesuíta português sobre as finezes (os favores ) de Cristo para com a humana gente e ter concluído por um espantoso , inédito e insólito pensamento: “A maior fineza de Deus aos homens é não fazer fineza alguma” e, todavia, “garantir tudo quanto o homem faça e a Si se identifique em Justiça e Caridade”. Toda a modernidade assenta em Espinosa. O espírito de Sor Juana e o de Espinosa coincidem. Razão e vão a par. Deus está sempre presente . O homem soberano . Espinosa harmonizou os dois sentidos que a civilização moderna” separou o inseparável . (...) O século XXI que vem será espinosiano, crente na razão (vida) e crente em Deus (morte)”, replicando Octavio Paz, como veremos adiante .

O livro, em edição bilíngüe, além do ensaio de 66 páginas de Montezuma, reúne os textos por ele citados, como o Sermão do Mandato (pregado na Capela Real, no ano de 1645) pelo Pe. António Vieira, objeto da crítica de Sor Juana; a Carta Atenagórica, ou Crisis ( carta de la madre Juana Inés de la Cruz, religiosa del convento de San Jerónimo de la ciudad de Méjico, em que hace juicio de um sermón del Mandato que predicó el Reverendíssimo P. Antonio de Vieyra, de la Compañia de Jesús, em el Colegio de Lisboa.); António Vieira em México – la carta atenagorica de sor Juana Inés de la Cruz, de Alfonso Junco ; Antonio Vieira y sor Juana Inés de la Cruz, por Robert Ricard, Juana Inés de la Cruz, por Manuel Bandeira, Carta de Más, por Octavio Paz ( um dos capítulos do livro de Paz, Sor Juana Inés de la Cruz, publicado no México em 1982 e traduzido no Brasil somente em 1998 (Ed. Mandarim ) sob o título Sóror Juana Inés de la Cruz, que traz o subtítulo As armadilhas da , remetendo justamente ao título da sexta parte do livro (las trampas de la fe) e, finalmente , Sor Juana e Sóror Madalena da Glória, por Ana Hatherly.

Este estudo de Montezuma pretendeu revolucionar toda a visão em torno da freira, escritora e intelectual mexicana, ao defender , pela primeira vez, a tese de sua heterodoxia, bem como revelando que a Santa Inquisição , sabedora desse fato , a teria processado (“do que não havia a certeza, por não haver sério motivo”), fazendo com que a douta mexicana fosse despojada de sua biblioteca de 4 mil volumes, “deixando-a a penar com tres libritos de devoción y muchos cilícios y disciplinas . “Sor Juana incomodada pela Inquisição ... (“la emperatriz de la lengua castellana”, como é chamada em seu país natal ); Padre Vieira incomodado pela Inquisição ... (o Imperador da Língua Portuguesa como o chamou Fernando Pessoa ). Não elo mais formoso e permanente que possa unir México e Portugal, na ampla hispanidade.”.

            Nesse delicioso e erudito ensaio , Montezuma aponta outros aspectos curiosos que mais aproximam do que distanciam Sor Juana e Padre Vieira, como “uma plataforma comum que seria a sua mestiçagem” (ela “filha de um capitão espanhol, supostamente um judeu convertido - e de uma criola. Filha natural. Eis um território de ninguém, de origem parda, não sacramentalizado e definitivamente humilde em status . (...) E foi o Padre António Vieira um homem nascido em igual território pardo, talvez mais humilde que o de Juana Inés de Asbaje” (e aqui cita um estudo de Hernani Cidade : “A família de António Vieira, dos Vieiras Ravascos, de Moura, nem era opulenta nem nobre (...) Não foi possível à Inquisição, que com tanto empenho o tentou, mostrar no sangue dos Vieiras mistura de sangue judaico; o mais que se averiguou foi que a tinha de sangue negro, de uma avó paterna, mulata ao serviço da Casa dos Condes de Unhão”) Evidencia ainda Montezuma a aproximação da mexicana do português pelo comum fervor a Santa Catarina com todas as implicações daí resultantes para a mulher ...) e que temos de reconhecer existir no Padre Vieira”. (....).” Padre Vieira foi um pioneiro do feminismo em Portugal, tal como Sor Juana o foi mais declaradamente, embora se deva falar de movimento feminista no Séc. XIX... E o Padre Vieira foi tão feminista que até desejou acrescentar à Santíssima Trindade ( Pai , Filho e Espírito Santo ) uma quarta essência : Nossa Senhora , o que era fazer chegar a igualdade aos céus ...”

Assim , Montezuma acredita que a “Crisis” de Sor Juana não tenha estabelecido propriamente um vendaval entre dois vultos dissonantes e hostis em temas capitais . Apresenta-se mais como um glosa , mas segura de si na controvérsia , no debate , na objeção e na contestação e na firme impugnação de argumentos de uma leitora atenta que não quer deixar passar os abusos de dislates do pregador lusitano . Por esta unilateralidade (uma monja que faz reparos e pensa por sua cabeça), tal relação não tem os foros de uma polêmica . Não houve um Padre António Vieira a responder a Sor Juana. (...) Pode pensar-se duas coisas : a) ou os ventos desta dissensão não chegaram sequer aos olhos e ouvidos do jesuíta português ; b) ou efetivamente chegaram (do que não existe prova real ) e a isso não respondeu por uma bem consciente vontade de não querer responder . Por sua vez este hipotético não querer responder pode ter , pelo lado do jesuíta , estas conjeturais explicações: a) por sua provecta e fatigada idade (passava dos oitenta anos feitos e turbulentos ); b) por uma boa dose de política conjetural (que em Padre Vieira tudo era política. Foi fogoso paladino de uma heresia, a de reputar o Reino de Cristo como espiritual e temporal, num aqui terreno a realizar-se na grei dos viventes ...). e com essa faceta diplomática de passivo activismo (o silêncio, por vezes, é a resposta, vale tudo e não fazer é que é estar fazendo).” 

Sublinha ainda Montezuma que “há que lembrar que esse final de Crisis e que não tem nada a ver com o sermão do Padre António Vieira, este absolutamente ortodoxo, é um final que me faz situar a Sor Juana como uma consciente heterodoxa e que usou “impugnar ” Vieira tão para chegar a esse final (....) Penso até que se o Sermão do Mandato não existisse, Sor Juana teria maneira de obter outro arranjo para não deixar sepulta em si essa visão moderna de Deus despejada da representação antropomórfica. É que o tema das finezas de Jesus/ Deus ela o aflorara tempos antes”.

Montezuma ousa contestar Octavio Paz (de quem se confessa admirador e considerá-lo um dos mais completos estudiosos de Sor Juana) apontando que ele “despachou a controvérsia Sor Juana/ Padre António Vieira para os subterrâneos indefesos das pueris e caducas questões que para a modernidade deixaram de palpitar ” ao escrever no final do capítulo Reino de Signos ” de seu livro Sor Juana Inés de la Cruz o Las trampas de la fe que a Carta Atenagórica “es um ejercicio a um tiempo sutil y vano” e ainda que: “esas páginas fueron escritas em 1690 y ya entonces eran anticuadas: em esos años escribían Leibniz, Newton, Spinoza Y tanto outro. El caso de Sor Juana se há repetido una vez y outra vez: há sido una nota constante de la cultura española e hispanoamericana hasta nuestros días. De siglo en siglo un Feijoo, um Sarmiento o un Ortega y Gasset intentan ponernos al día. Vano empeño: la generación siguiente, embobada com esta o aquella ideologia , vulve a perder el tren. Sufrimos aún los efectos del Concílio de Trento”. Lamenta que Paz não tenha “pressentido quanto de espinosismo ( sem Espinosa) havia nesse clarão dissidente com que se ultima a Carta Atenagórica (...)..”. Nem Paz, nem António Alatorre e de igual forma Robert Ricard ( estudiosos de Juana Inés), souberam, pela ótica de Montezuma, notar o “insólito da afirmação (el mayor beneficio, y el no hacer finezas la mayor fineza ) que deitava por terra tudo o mais (de Vieira e de Sor Juana nos limites de Vieira) que antes tinha sido explícito”. Acentua ainda Montezuma: “Paz não aprofundou o alarme e foi pena. Se pressentiu nesse remate uma alvorada de modernidade, calou o estímulo . Se observou uma Sor Juana a cortar as amarras à cosmovisão religiosa reinante ( que ainda impera e imperará na cristandade vária ), silenciou o significativo espanto com a desatenção de coisa passageira ... um lapsus linguae, um contrário sem peso. Ambos ( Paz e Ricard) não sentiram e não valoraram quanto de espinosiano, quanto de moderno, quanto de cosmovisão mui outra e diversa, existia no remate finalíssimo de Crisis!”

Atrevidamente ainda acrescenta: “ Por mais terrivel que possa parecer a muitos, foi o que Sor Juana implicitamente refutou ao conceber Deus num fulgor sem dádivas humanas a distribuir aos humanos, “el no hacer finezas la mayor fineza ... de Dios”... e que a conduzia inevitavelmente ao amor intelectual a Deus e que nenhuma contrariedade pode macular , marchando para o que Borges cantou em honra de Espinosa: El más pródigo amor le fue otorgado, / El amor que no espera ser amado. / Claro que Sor Juana não leu a Espinosa, mas terá mui certamente conhecido um soneto onde está bem patente a singularidade extrema do “amor que não espera ser amado”. O soneto é havido como expoente da catálica, mas a sua fonte é... islâmica ”Refiro-me ao mais célebre soneto em língua castelhana, conhecido por “Soneto a Jesus Crucificado” ou “No me mueve, mi Dios, para quererte”...”, seu primeiro verso . (...). Sor Juana terá tido cabal conhecimento deste soneto que marca uma singularidade: o amor a Deus, amor ébrio e isento , é por Deus e não por uma qualquer correspondência de Deus para com o que O ama, o que conduz fatalmente ao egrégio domínio da “ fineza maior de Deus é não fazer fineza alguma” e aos versos borgianos, coroa de Espinosa, “el más pródigo amor le fue otorgado ; el amor que no espera ser amado”. O fato é que “o maior valor de Sor Juana, a sua coragem, fundando um novo apostolado : - o da vera emancipação da mulher!

Gostaríamos também de ainda destacar outro livro, Destino e obra de Camões, seguido de “um dia de jorge luis borges”, de Miguel de Torre Borges, sobrinho do escritor argentino, publicado pela Embaixada de Portugal em Buenos Aires em 2001. Trata-se de uma conferência de Borges na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, em junho de 1972, que foi publicado pela primeira vez em setembro desse mesmo ano, graças ao empenho de Maria Julieta Drummond, que então trabalhava naquela Instituição, com um prólogo “a Camões na Argentina”, de Joaquim Montezuma de Carvalho, datado de Lourenço Marques, 24 de abril de 1972. 

Outro livro que recolhe vários dos ensaios de Joaquim de Montezuma de Carvalho, é Cervantes em Portugal, em parceria com D. José Toribio Medina, publicado por Assírio Bacelar, Lisboa, 2005. Nesses ensaios, publicados originalmente no Diário dos Açores, Montezuma demonstra, pela primeira vez, que Cervantes vivera por um dilatado período em Portugal e, inclusive, ter-se amancebado com uma portuguesa, de quem teve uma filha, a qual “irá amaciar a prematura e agreste velhice do maravilhoso criador”.

Uma eloqüente prova do universo de almas com as quais dialogavam as missivas de Montezuma é o envio a esses amigos de um curtíssimo e enigmático poema , “ Improviso”, de Eugénio de Andrade, que havia recebido do poeta , em forma de cartão de Natal, datado de Foz do Douro, 5-10-99: “Uma rosa depois da neve. / Não sei que fazer / De uma rosa no inverno. / Se não for para arder, / Ser rosa no inverno de que serve?”, desafiando-os a escrever “improvisos sobre esse improviso”, textos que ele faria publicar no Suplemento Das Artes das Letras, de O Primeiro de Janeiro, no Porto, ao longo de dois anos (2002-2004) como forma de homenagem aos 80 anos do grande poeta, comemorados em 2003, que, como sabemos, tinha na rosa um dos seus temas recorrentes. Posteriormente, esses textos (300 colaboradores de 20 diferentes países ) foram reunidos num belo álbum “A Jeito de Homenagem a Eugénio de Andrade”, publicado pelo mesmo O Primeiro de Janeiro, um dos mais antigos jornais de Portugal em atividade ( fundado em 1872), acrescidos de uma apresentação de sua diretora Nassalete Miranda e dos estudos de Arnaldo Saraiva (“O Milagre da Rosa Eugeniana”) e José Augusto Seabra (”Eugénio de Andrade e o Porto ou a Habitação do Poeta ”), mais 4 pranchas coloridas dos pintores Jaime Isidoro, Francisco Laranjo, José Rodrigues e Júlio Rezende. Esse livro saiu um pouco antes do falecimento de Eugénio de Andrade, em 2005.

Em 2007, em mais do que oportuna hora , é publicado pelo Instituto Piaget, Lisboa, o alentado volume (502 páginas) “Do Tempo e dos Homens” – Volume I – Da história literária à história da cultura”, livro que reúne alguns dos mais importantes ensaios de Joaquim de Montezuma de Carvalho. No dizer do próprio autor, em nota Introdutória em jeito de carta, “escrevi muito, mas não tenho sequer um livro inteiramente publicado com o meu nome . Este será o primeiro! (esta carta, escrita ao editor Dr. José Fernando Tavares, foi enviada de Lisboa a 29 de março de 1998, vindo o livro a ser publicado, somente nove anos depois, felizmente, a tempo do autor tê-lo em mãos antes de sua partida. 

O livro é dividido em três partes: Primeira parte - Temas Literários - a) Literatura de Língua portuguesa, b) literatura européia; c) literatura comparada. Segunda parte - Camoniana ; e, terceira parte - Temas de História da Cultura, mais apêndice documental. Não sabemos se há planos de vir à luz um segundo volume e sequer se estaria esse provável volume em mãos do editor, o que, sinceramente, esperemos tenha acontecido, para o ganho de seus leitores e da história da literatura .

É ainda em 2007 que o editor Cláudio Giordano (Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, de São Paulo), editor que abnegadamente vem se dedicando à recuperação da memória literária, publica “Cartas a Joaquim de Montezuma de Carvalho”, de Manuel Bandeira, numa edição fora do comércio , de apenas 50 exemplares, para distribuição entre amigos de Montezuma e Bibliotecas. Além de 38 cartas de Bandeira, figuram textos sobre Bandeira de, entre outros, Hernani Cidade, Raul Bopp e Ribeiro Couto, bem como textos do próprio Montezuma, originalmente publicados em jornais portugueses, em homenagem aos 70 anos de Bandeira, outra de suas iniciativas.

O Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho, um barroco assumido (“O barroco de Padre Vieira e Sor Juana é complexo, mas não a hedionda complicação pela complicação. Hoje há “almas” de “escritores” que não tem nada para dizer e complicados são na sua “clareza” (...) Eu prefiro os antigos e verdadeiros! Barrocos hodiernos há muitos (....)... Se ao menos tivessem a lição Sor Juana/Padre Vieira viva e atual no sangue da cultura, outro galo cantaria aleluias!”) que, sem nunca ter recorrido às informações que circulam no espaço virtual (nunca usou um computador), fez circular um tão extraordinário volume de informações que causaria espanto a qualquer jovem dos muitos que fazem desse modo cibernético (equivocadamente, no mais das vezes) sua única forma de pesquisa. Conseguiu, dessa forma, a mágica de unir informação a conhecimento e erudição, num mundo em que, para nosso desconsolo, privilegia a informação, confundindo-a com conhecimento.

Dentre os seus muitos méritos, o Dr. Montezuma foi um incansável divulgador de nossa cultura em Portugal, um grande amigo do Brasil e da literatura brasileira, representou intensa e continuamente o verdadeiro papel de um embaixador cultural que, sem alarde , aproximou e divulgou a cultura luso-brasileira, com a força da paixão e desprendimento que falta aos acordos oficiais.

Fica-nos, destes anos de convívio epistolar e de esporádicos encontros presenciais em Lisboa, uma certeza, que ilustramos com uma frase do próprio Joaquim de Montezuma de Carvalho: “a goela da morte vai tragando tudo. Parece que tudo se vai, mas não é certo”.

   

Bibliografia:  

- Carvalho, Joaquim de Montezuma de - Sor Juana Inés de la Cruz e o Padre António Vieira – ou a disputa sobre as finezas de Jesus Cristo , Editor Assírio Bacelar (Vega), Lisboa, 1998, patrocinado pela Frente de Afirmación Hispanista, A. C., México

- Borges, Jorge Luis, com prólogo de Joaquim de Montezuma de Carvalho - Destino e obra de Camões, Embaixada de Portugal – Buenos Aires, 2001

- Carvalho, Joaquim de Montezuma de; Medina, D. José Toribio – Cervantes em Portugal - Nova Vega Gabinete de Edições, Lisboa 2005

- Carvalho, Joaquim de Montezuma de - Do Tempo e dos Homens Volume I – Da historia literária à historia da cultura , Instituto Piaget, Divisão Editorial, Lisboa, 2007

- Veras, Dalila Teles – Um Amigo do Brasil, O Escritor, nº 43, União Brasileira de Escritores, S.Paulo, novembro/dezembro de 1986 (este mesmo texto/entrevista foi reproduzido no jornal O Figueirense, Figueira da Foz, Portugal, 03.04.1987

- Veras, Dalila Teles - Brasil tem embaixador literário em Portugal, Diário do Grande ABC, Santo André, S.Paulo, 7.12.1986

- diversos autores, - A Jeito de Homenagem a Eugénio de Andrade, Fólio Edições/O Primeiro de Janeiro Das Artes das Letras, 2005, Porto, Portugal

- Bandeira, Manuel - Cartas a Joaquim de Montezuma de Carvalho, Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, S.Paulo, maio 2007.

- Recortes vários, publicados nos jornais citados.

Comunicação apresentada no Colóquio 400 Anos de Padre António Vieira – Imperador da Língua Portuguesa e XIII Encontro Cultural de Língua Portuguesa, em 24 de abril de 2008, na Fundação Memorial da América Latina, promovido pelo Centro de Estudos Fernando Pessoa

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