DAlila Teles Veras |
João Ramalho: um luso na história e na literatura do Brasil
A
polêmica figura do português João Ramalho, fundador e alcaide-mór da Vila
de Santo André da Borda do Campo, em 1553, “fundação efêmera, tão
envolta em mistério que ainda nem se sabe onde exatamente se terá
localizado”, tem rendido à História do Brasil incontáveis páginas de um
não mais acabar de foi, não foi. Sabe-se
que essa vila, primeiro povoado de brancos no planalto paulista, situava-se
na região hoje chamada de Grande ABC (SP) sem, no entanto, ser conhecido o
seu exato local; sua existência teria durado apenas cinco ou oito anos, por
ordens do Governador Geral Mem de Sá e contra a vontade de seu fundador. A
vila foi extinta em 1558 ou 1560, e sua população transferida para a recém-fundada
(pelos jesuítas) São Paulo dos Campos de Piratininga. De
comprovação concreta, existem as atas, preciosos 53 volumes manuscritos,
que registram a vida da Vila de Santo André da Borda do Campo nos anos de
1555 a 1558. Mal conservadas e de leitura difícil, as atas foram decifradas
por paleógrafos e mandadas imprimir pelo então Prefeito de São Paulo,
Washington Luís Pereira de Souza. Jamais foi encontrado o primeiro volume,
correspondente ao ano de 1553 a meados de 1555. Sabe-se que esse volume
existiu, pois dele dá notícia Frei Gaspar da Madre de Deus, o primeiro
historiador a ocupar-se da personagem de João Ramalho, de forma sistemática.
Varnhagen e Pedro Taques dizem que foi em 1558 que se deu a extinção de
Santo André, mas, discorda Manuel Alves de Souza pelo fato de constar em uma
ata da Câmara de São Paulo, de 1564, que há “quatro anos” a vila havia
sido despovoada. De
qualquer maneira, vale lembrar o comentário de Taunay sobre essa preocupação
em registrar os fatos históricos, quando em nenhuma parte do Brasil se fazia
qualquer registro da vida de qualquer aldeiamento, salvo raras exceções.
Pelas atas é possível perceber que as normas administrativas e burocráticas
eram respeitadas, bem como a preocupação com a organização social da
cidade. Ali existia um pelourinho que fazia justiça àqueles que
desobedeciam a lei. Se
imprecisão ainda contém a história da Vila de Santo André da Borda do
Campo, mais incertos são os dados biográficos do enigmático português João
Ramalho, o homem que “afrontou as serras e as matas, em tantos passos difíceis
de varar, pelo trilha do índio, galgou-as, dominou-as. E ao natural da terra
se ligou para vencer o campo que se lhe abria largo ante os olhos, para a
seguir, com a sua geração mamaluca, da qual foi o patriarca, vir iniciar o
domínio do sertão”. A data e o local de seu nascimento também possuem
dados incertos, apesar de constar de um testamento do próprio João Ramalho,
descoberto por Washington Luís no arquivo de José Bonifácio, onde ele
mesmo declara ter nascido em “Bousella (Vouzela), comarca de Viseo”. Incerta
também é a data e a circunstância de sua chegada ao Brasil (as datas
variam de 1501 a 1510). Alguns historiadores calculam a sua chegada ao Brasil
em 1490 (antes de Colombo chegar à América, portanto), pelo fato de, em
1564, dizer ele, na Câmara de São Paulo, que “tinha idade superior a
setenta anos”. Octaviano Gaiarsa, em A Cidade que Dormiu Três Séculos, diz: “o fato é que, quando Martim Afonso deu predicação de vila ao
povoado onde João Ramalho vivia em 1553, já tinha netos em bom número e vários
filhos tidos de Potira ou Bartira, filha do cacique Tibiriçá”. O poderoso
Tibiriçá, senhor absoluto dos Campos de Piratininga, além de seu sogro foi
seu grande amigo e aliado. Transferida
a vila para São Paulo, João Ramalho não teria ali permanecido. Apesar de
ter sido eleito vereador pelos paulistanos, recusou o cargo alegando velhice.
Seguiu rumo ignorado. Para alguns historiadores, teria morrido, em local também
ignorado, depois de 1582. Affonso
de E. Taunay é autor de uma das mais bem fundamentadas obras sobre o
assunto, João Ramalho e Santo André
da Borda do Campo, na qual reafirma a importância dos estudos de Frei
Gaspar da Madre de Deus, em Memórias
para a História da Capitania de São Vicente, sobre a figura de João
Ramalho. Ao citar Oviedo e sua
“História General y Natural de las Indias” quando o mesmo se reporta aos
informes do “Yslario”, de Alano de S. Cruz, Taunay chama a atenção para
o seguinte fato: “próximo a uma das ilhas dos Porcos onde se perderam
portugueses numa nau; e num batel se salvou a gente e povoou a Ilha dos
Porcos por alguns dias, de onde passou a S.Vicente”. Estariam entre o número
desses infelizes náufragos, citados por Oviedo, João Ramalho e Gonçalo da
Costa, chegado a “tierra de San Vicente” desde 1510, onde, de acordo também
com outros estudiosos, viveu até decidir subir a serra do mar e viver no
planalto. Varnhagen,
também citado por Taunay, admite que já em 1508 estava João Ramalho no
Brasil. E
continua Taunay: “Nas crônicas da época ou nos documentos publicados
sobre os portugueses que primeiro habitaram este litoral fala-se de Gonçalo
da Costa, Antonio Rodrigues, João Ramalho, Mestre Costa, Francisco Chaves,
afora anônimos náufragos de um navio soçobrado em mar alto, e de capitães
pilotos ou embarcadiços em companhia de espanhóis, principalmente de
passagem por essa costa”. Conclui
Taunay que “foi o posto avançado ramalhense, de cima da serra, o centro do
intenso caldeiamento luso-brasílico que garantiu a subsistência das duas
vilas portuárias da ilha vicentina nos incertos milésimos de suas décadas
iniciais”. De
João Ramalho e da Vila de Santo André da Borda do Campo também se ocupou
L. Amaral Gurgel, em seus “Ensaios Quinhentistas”. O historiador, após
analisar longamente as inúmeras pesquisas, documentos e cronistas da época,
chega a afirmar, contrariando muitos, que João Ramalho foi mesmo um nobre
“talvez não dessa nobreza aristocrática que se recebe através de velhos
pergaminhos (...) mas sim nobre pela grandeza de sua alma”. Se assim não
fosse, reflete Gurgel, fosse ele degredado ou naúfrago, tendo sido vítima
da intolerância do seu tempo, alguns mil arcos entre os seus comandados,
havia de, por vingança ou por egoísmo, opor tenaz resistência aos luzos
invasores de sua Vila. Ao contrário, o seu gesto foi de franca
hospitalidade”. E continua, “João Ramalho era ilustre, ainda mesmo que
fosse analfabeto, como alguns historiadores supõem, pela sua incontestável
atuação no alvorecer da colônia e também soubera estudar e ilustrar sua
inteligência nesse grande e extraordinário livro chamado – mundo”. Náufrago?
Degredado? Judeu? Analfabeto? Feiticeiro? Agente da Corte de Lisboa? É
claro que uma figura envolta em tanto mistério só poderia povoar as cabeças
de ficcionistas ávidos por boas histórias. Se
a história deixou de registrar, a imaginação encarregou-se do resto. Não
foram poucos os que aproveitaram tal filão. Das
obras que conhecemos, destacaríamos A
Cidade Assassinada, magnífica peça em três atos de Antonio Callado,
levada à cena pela primeira vez, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no
dia 8 de junho de 1954, pela Cia. Dramática Nacional e publicada pela
Editora José Olympio naquele mesmo ano. O
drama passa-se no ano de 1560, na Vila de Santo André da Borda do Campo e
tem como personagens principais João Ramalho, já velho (quando a história
dá conta de que ele viveu além de 1580, data em que assinou um famoso
testamento), sua filha Rosa Bernarda “linda mameluca, cabelos negros e
lisos, olhos grandes, trigueira e rosada” por quem nutre “uma paixão
absoluta, paterna e carnal ao mesmo tempo e que Rosa retribui com amoral
displicência, cândidamente afeita à vida endogâmica da pequena vila sem
mulheres brancas e sem ética européia”, Diogo Soeiro, um espião a mando
da Corte por quem Rosa se apaixona, e mestre Antonio Rodrigues, pintor
apaixonado pela arte, mas sem tempo e sem meios de se realizar, que veio com
João Ramalho da cidade de Coimbra. Como conflito, a rivalidade com o Padre
José de Anchieta personagem por quem Ramalho nutre um profundo desprezo “a
minha luta é com pólvora e aço e não com versinhos de autos ou histórias
de catecismo. Eu ainda volto a Portugal, vou ao palácio de El-Rei para
pedir-lhe que não mande mais santos ao Brasil, mas os degredados, mande o
bagaço humano que é preciso para derrubar estas brenhas e fecundar estas índias”. Na
comovente cena final, Anchieta encontra-se pela primeira vez com Ramalho que,
no entanto, acabara de morrer. A personagem de Anchieta, emocionada, diz:
“Assim, tua alma agreste e tormentosa evitou até o fim o nosso encontro.
Faltou ao meu redil a ovelha buscada com maior paixão”. Também
Afonso Schmidt partiu de alguns dados históricos para elaborar o que ele
mesmo chamou de novelazinha fantasiosa e sem pretensões históricas, O
Enigma de João Ramalho. Apesar dessa falta de pretensões, o escritor
flagrantemente valeu-se de exaustiva pesquisa, que o leva a levantar a hipótese
(também apontada por alguns historiadores) de que os portugueses chegaram ao
Continente antes de Colombo (1490). O
romance começa com João Ramalho ainda em Portugal e a desconfiança de que
ele fosse judeu (nariz aquilino, barbas ramalhudas e cor de fogo) que o levou
ao degredo. Juntamente com um outro degredado, de nome Duarte, foi deixado no
mundo novo e entregue à própria
sorte. Relata
o período em que Ramalho viveu entre S. Vicente e o Planalto e a Fundação
da Vila de S. André da Borda do Campo. No romance, em 1560, Ramalho contava
com 90 anos. Ao contrário de Callado, Schmidt narra um feliz convívio de
Ramalho com Anchieta, após sua transferência para São Paulo. É
também digna de nota, a crônica de Viriato Corrêa, A
Dura Vida em Santo André, incluída no livro Terra
De Santa Cruz, Contos e Chronicas da História Brasileira. Baseada na
leitura da atas da Câmara de Santo André, a crônica aborda com muito bom
humor o problema dos pesados impostos e multas que penalizavam os moradores
da Vila, incluídos aí até os vereadores que faltassem às sessões. O
poeta Judas Isgorogota, em Sapatinhos de Prata, livro de poesias infantis
publicado em homenagem à Cidade de São Paulo no IV Centenário de sua Fundação,
dedica alguns versos a João Ramalho, no poema “Fundação de São
Paulo”. Nele, o poeta bota mais confusão sobre as já desencontradas datas
e dados existentes. Diz ele: Como
foi que João Ramalho á
nossa terra aportou? Ninguém
sabe. A sua história em
lenda se transformou... Sabe-se
apenas que no ano de
mil quinhentos e dois chegava
Ramalho às terras do
Brasil e que, depois, Graças
ao trato que teve da
parte dos guaianás, resolveu
não mais deixá-los, com
eles vivendo em paz. E
assim, ficou entre os índios das
tribos do litoral, sobre
os chefes exercendo grande
influência moral. ‘E
um belo dia, casou-se com
uma linda guainá, cujo
nome era Bartira, filha
de Tibiriçá. Eis
porque Martins Afonso de
Souza, quando chegou na
enseada de S. Vicente, esta
surpresa encontrou: Entre
aquela gente inculta que
andava em plena nudez, havia
quem lhe falasse no
idioma português. Mais
recentemente, o poeta andreense Zhô Bertholini, da Santo André que não
mais carrega a “borda do campo”, reporta-se ao patriarca seiscentista,
logo nos primeiros versos do longo poema “Poética Urbana”: Conquistas
Ramalhinas Aventuras
Bandeirantes Devastações
das Matas Trilhadas
por Tibiriçá Bordas
dos Campos Planalto
Atlântico Águas
do Tamanduatei Berço
de Piratininga Para
uma figura histórica tão polêmica que desafia até sérios historiadores
à sua desocultação, muito mais deverá ter inspirado escritores, poetas e
outros artistas, mas que o nosso trabalho de pesquisa ainda não conseguiu
alcançar, ficando, assim, o tema em aberto.
Bibliografia:
- TAUNAY, Affonso de E., - João Ramalho e Santo André da borda do Campo, publicação da Prefeitura Municipal de Santo André, comemorativa do Quarto Centenário da Fundação de Santo André da Borda do Campo, 2ª edição, 1968 - GAIARSA, Octaviano A. – A Cidade que Dormiu três Séculos – Santo André da Borda do Campo, seus primórdios e sua evolução histórica, 1ª ed., Prefeitura Municipal de Santo André, 1968 - GURGEL, L. Amaral – Ensaios Quinhentistas, Empresa Editora J. Fagundes, 1ª ed. 1936, SP - CORRÊA, Viriato – Terra de Santa Cruz – Contos e Chronicas da História Brasileira, Livraria Castilho, RJ, 1921 - CALLADO, Antonio - A Cidade Assassinada, Peça em 3 atos e 7 quadros, 1ª ed., Livraria José Olympio Editora, 1954 - SCHIMIDT, Afonso – O Enigma de João Ramalho, romance – Clube do Livro, SP, 1963 - ISGOROGOTA, Judas – Sapatinhos de Prata – Edição Saraiva, 1954 - BERTHOLINI, Zhô – Poética Urbana, Col. Poéticas, Alpharrabio Edições, 1996, Sto. André, SP (originalmente publicado na coluna Viaverbo (Diário do Grande ABC), depois, ampliado, foi publicado na Revista Encontro, do Real Gabinete Português de Leitura, do Recife.) Revisto, foi republicado na revista das Comunidades de Língua Portuguesa no. 19, 1° semestre 2003, Edição Especial dedicada a João Ramalho nos 450 anos de Fundação da Villa de Santo André da Borda do Campo. Texto revisto. |
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