DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 PESSOA ENTRANHADO  

Que poderia uma simples leitora e eterna aprendiz de poeta, cujo alcance da voz não vai além do quintal da sua aldeia, falar acerca do verdadeiro fundador da moderna poesia de língua portuguesa e que, para piorar a situação, na absoluta impossibilidade de ser apenas um, ainda foi múltiplo - pessoas? Que poderia eu acrescentar a todos vós que aqui estão, leitores e estudiosos da obra daquele que seria, não fosse ele próprio ter outorgado o título a Vieira,  “Imperador da língua portuguesa”? Que detalhe, que significado ou significante de uma obra sem precedentes, poderiam ser apontados, além dos tantos e profundos que, mundo afora, já foram mostrados, apontados, dissecados, publicados?

As quase 5 léguas que separam o lugar de minha residência deste onde agora nos encontramos, são ínfimas comparadas com a distância que vai de mim àquilo que, eventualmente, esperam de mim.

É preciso também aqui reconhecer que falar das dificuldades de se produzir um texto é recurso estilístico a que muitos cronistas recorrem quando da absoluta falta de assunto. Certo,  só que neste caso, não foi o assunto que faltou, mas a falta total de bagagem e competência crítica da convidada para abordá-lo.

Diante do impasse e não querendo em absoluto fugir ao gentil convite-imposição do nosso professor João Alves das Neves, aqui estou, vísceras de leitora à mostra, com a intenção de mostrar não o poeta Fernando Pessoa, mas os devastadores efeitos de sua monumental obra nesta modesta e apaixonada leitora que nasceu exatos 58 anos depois dele e, ainda assim, dele sentiu-se contemporânea.

Criatura sem escola, tive nos livros os bancos formais que me faltaram e que, afinal, pouca falta fizeram naquilo que mais almejava, ou seja, decifrar o mundo através da palavra e aprender a fazer-me humana. Nisso, ajudou-me fundamentalmente a poesia, nisso foi mestre Fernando Pessoa, o meu mestre, cuja voz ouvi pela primeira vez lá pela altura dos meus 20 anos. Quanto atraso para um encontro tão definitivo!

Estava tudo lá, tudo o que queria ter ouvido e dito, as minhas perplexidades metafísicas (“Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? / Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! / E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!”), a dor de ver/ouvir a pátria em dor (“Ó Mar Salgado, quanto do teu sal / São Lágrimas de Portugal”), as dores próprias  (“Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...”) e as alheias (“Vão vagos pela estrada, / Cantando sem razão / A última esperança dada / À última ilusão”), a grandeza do amor (“O amor é uma companhia. / Já não sei andar só pelos caminhos, / Porque já não posso andar só”) e o ridículo do amor (“Também escrevi em meu tempo cartas de amor, / Como as outras, / Ridículas”), a contemplação da vida sem metafísica (“A espantosa realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias”) e a necessidade da metafísica (“Ah, o horror de morrer! / E encontrar o mistério frente a frente / Sem poder evitá-lo, sem poder”), os olhos virgens de mundo (“Outras vezes oiço passar o vento, / e acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.”), com a simplicidade de quem olha e vê e sente apenas o que olha, mas também o olhar cansado de ver o mundo (“Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta / E, sem que nada se altere, / Tudo se revela diverso”), a visão de quem foi, viu e cansou do olhar das coisas e dos seres do mundo (“Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar. / Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles”), viagens, físicas e virtuais, viagens de quem jamais viajou (”As viagens, os viajantes – tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão / tanta gente / Tanto destino diverso que se pode dar à vida”),  a certeza de sermos sempre estrangeiros (“Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros / Onde quer que estejamos. / Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros / Onde quer que moremos. Tudo é alheio / Nem fala língua nossa.”) e, finalmente, a suprema ironia diante dos vencedores (“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”).

Tudo estava lá, enfim, nas páginas inesgotáveis de sua obra, aumentando a minha vontade de ser  poeta para, logo a seguir – ai de mim - abater-me a desgraça de saber que não havia mais o que dizer e provavelmente sequer “como” dizer em poesia, pois tudo ali estava dito em todas as formas e matizes.

O meu olhar ainda menino quedou-se diante da impossibilidade de penetrar na língua daquela maneira, de saber todas as palavras adequadas a cada um dos mais ínfimos sentimentos e sensações e a certeza de poder permanecer em companhia permanente do mais solitário dos homens que, para amenizar a solidão  - característica de todo o gênio - cercou-se de tantos outros eus, desdobramentos do pensar, justificativa de tantos ser.

Ainda assim, a influência foi devastadora no cumprimento da sina de ser poeta e, ainda por cima, português. Deu no que deu, passei a querer imitá-lo. Primeiro, inconscientemente, cópia malfeita da cópia, da cópia. Depois, liberta, outras influências interpenetrando-se (Drummond, Bandeira, Murilo e tantos outros), vi-me na quase obrigação da homenagem, consciente, ao criador de Mensagem, o mais português dos poemas e ao poeta múltiplo e homem solidário que hoje, mais do que poeta e, ao lado de Camões, sinônimo de nossa própria língua.

 

MÚLTIPLOS

      “Multipliquei-me, para me sentir,

        Para me sentir, precisei sentir tudo”

 

A carga de ser tantos - peso imenso

verga o dorso - defesa e prazer

antecedendo a tragédia.

Qual, na verdade, permanece?

Aguarda?

Subordinação estratégica

essa

a do eterno adiar.

Nem todos suspeitam

da função transgressora

(ou postura ética?)

do não se revelar.

 

 

CANTO EXORCISTA

    “O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo...”

 

Há um corvo pousado em minha alma

bicando o que restou da esperança

resto apodrecido de não mais ser.

E este canto nada mais é

do que dolorosa nênia

pra espantar o horror.

 

 

FINGIR-SE

   “Fingir-se é conhecer-se”

 

Nas muitas fantasias

e feições desenhadas

os múltiplos se fizeram súditos

encruzilhadas...

Recolho as máscaras

dramático gesto

à morte dos personagens.

Dos que fui, já não sou

resta um narrador

contando inverossímeis estórias.

 

Ao finalizar este brevíssimo depoimento, glosando outro meu mestre, Bandeira, eu diria: desculpem, pois não pude ser outra coisa. Apenas leitora e paixão.

 

Texto apresentado no encontro promovido pelo Centro de Estudos Americanos Fernando Pessoa, no dia 25 de novembro de 2000, nos 60 anos da morte de Fernando Pessoa, realizado no do Clube Português,, em São Paulo.

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