DAlila Teles Veras |
EU NUNCA ESTIVE EM MACAU Eu nunca estive em Macau mas, desde pequena,
fizeram-me decorar os símbolos lusitanos deixados mundo afora. Quanto
orgulho menino em citar Dio, Damão, Goa e Macau. Delícia das delícias
pronunciá-los, imaginando-os, inatingíveis, matéria apenas de sonho e
fantasia. Eu nunca estive em Macau, mas essa nesga de terra a
oriente esteve sempre em meu imaginário, como um sedutor território da
literatura. Sem lá jamais estar, o meu genoma chegava à China,
na pele de Jorge Álvares e na de Fernão Peres de Andrade nas suas 8
caravelas, em 1517. Lá estava eu, a esperar o boticário embaixador Tomés
Pires em sua fracassada missão diplomática. Misturei-me aos determinados
comerciantes e seus aventurosos empreendimentos unificadores, para,
finalmente, em 1557 participar da Fundação de Macau. Ali cheguei na bagagem do Provedor Mor dos Defuntos e
Ausentes, curioso cargo do poeta Luiz Vaz de Camões, estabelecendo-me ao seu
lado na primeira feira de mercadores em 1558. Sem nunca ter pisado aquele solo, assisti ao ato de doação do país aos portugueses, sem que, para isso, tenha sido necessário qualquer ato de violência ou suborno. Acompanhei a sua evolução de feitoria a importante porto comercial. Passear as mãos pela Gruta onde, dizem, Camões
escreveu os seus cantos, ficou desde sempre como um desejo secreto e irrealizável.
Ainda que, sabendo da dúvida sobre a verdade de sua presença naquele local,
muito menos que ali tivesse escrito parte dos Lusíadas, perder-me-ia em meio
aos seus leitores que, estes sim, com a sua presença, acabaram por
transformar aquela gruta em santuário impregnado da presença do poeta, como
culto e celebração da língua portuguesa. Eu nunca estive em Macau, mas Wenceslau de Moraes,
outro luso sequioso de culturas e
de curiosidade incontrolável, que ali viveu com sua mulher Atcham,
mostrou-me essas marcas, como feridas agradáveis de coçar, na pele asiática
daquelas distantes terras. Eu nunca estive em Macau, mas lá permaneço ao lado
do poeta Pessanha, em seu exílio voluntário e definitivo, por força do desígnio
luso e determinação atávica de plantar a língua portuguesa em inóspitos
recantos do planeta. Eu nunca estive em Macau, mas aprendi com Torga, que
também tardiamente lá esteve, que naquela terra “é tudo tão enigmático,
tão movediço, tão ambíguo, tão labiríntico, que o tino perde-se a cada
passo”. Eu nunca estive em Macau talvez por medo de procurar
Portugal e não encontrá-lo,
apesar de saber que ali ficaram cravadas marcas lusíadas (“pegadas sonâmbulas”,
como ainda diria Torga). Eu nunca estive em Macau mas chorei ao ver/ouvir, via
satélite, homens de olhos amendoados e pele amarela a falar a minha língua
e a despedirem-se do povo português que por lá andou durante todos estes séculos. Haverei de ir a Macau um dia e seguir as pegadas dos
vocábulos lusos, encravados em insondáveis escaninhos culturais, relicários
que o tempo guardou. Comunicação apresentada no Colóquio de Macau, promovido pelo Centro
de Estudos Americanos Fernando Pessoa na Biblioteca Mário de Andrade, em SP,
em 18.8.2000 |
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