DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 SENTIR-SE PORTUGUÊS NA DIÁSPORA - Um depoimento  

O primo mandou dizer a meu pai: venham, o país é bom e a gente generosa e o vosso sustento será garantido; além do mais, na altura do carnaval as mulheres, dadivosas, desfilam nuas sem preocupação de esconder suas vergonhas. Aqui se dança e canta de dezembro a fevereiro. O trabalho é abundante e a terra nunca se acaba. Viemos.

Um enxoval novinho em folha nas malas e das velhas coisas, só o essencial: a máquina de costura, louças e lençóis bordados, cobertores, um diploma de 4a. classe, uma cartilha de João de Deus e o dinheiro apurado com a venda de todos os pequenos bens acumulados durante a vida inteira. Um sonho comprado em forma de passagem num paquete e a curiosidade habitando olhos famintos de novas gentes e  terras para lá do Bojador. Além da dor? Talvez, já que ao partir, carrega-se sempre a intenção de ser outro. Outras dores, não importa, o sonho comanda a nau.

Fácil será, porém, descobrir que ninguém atravessa impunemente a linha do Equador. A história contada no país novo não é a mesma contada nas cartilhas escolares. A saga dos homens intrépidos, cruzando oceanos e descobrindo mundos, sem temor a sargaços nem batalhas tem aqui nova versão. De heróis passamos a usurpadores e carrascos. De personagens da História passamos a personagens de piadas, estereótipo de homem inculto.

            De colonizador a colonizado, a confusão de identidade. A dualidade se faz presente como estigma. As raízes, veias abertas, passam a receber influências novas, convívios outros, injeção de latinidade continental, determinando nova visão de mundo, . O cozido feito pela mãe convive pacificamente com a feijoada da casa do vizinho,o vinho,  ainda produzido no quintal pelo pai, substituído pela cerveja na roda de amigos. O sotaque e a escrita se modificando, a próclise no lugar da enclíse, num ser agora em absoluto sincretismo cultural.

E não são mais os mares que  começam,  mas  terras  e cores que nunca  se  acabam. Jacintos deslumbrados incorporando Macunaímas, Antónios que se transformam em Antônios, Amálias metamorfoseadas em Betâneas, senhores na pátria, inda que de alguns palmos; servos na diáspora, refazendo caminhos ao inverso.

A pátria não é mais a língua, a pátria somos nós, diáspora em busca de cidadania.

            Rendidos, soltamos a âncora no porto e aceitamos um papel de "permanência" que, no entanto, deve ser temporariamente renovado.

Ainda assim, finca-se a âncora mais fundo e já dançamos ao ritmo tropical. Geramos filhos que já nos falam com outras vozes e de outras coisas, a brasilidade abrindo sutilíssimas fendas nos atavismos e convicções. O regresso, a princípio diariamente planejado, já é um doce e eterno adiar. E, se por ventura, algum mais afortunado amealhou o suficiente para fazê-lo, logo poderá constatar que é, agora, impossível retornar. Assim como as águas do rio do velho Heráclito, também nós não somos mais os mesmos, tampouco os amigos e parentes que um dia lá ficaram e que povoam nossos sonhos de doída saudade. Além do mais, o novo sotaque determina que também lá, na velha pátria, sejamos igualmente estrangeiros. Nem de lá, nem de cá; e, neste caso, a língua  não nos serve de teto nem de pátria, falta-nos a cidadania.

E, ao tocar novamente o solo tupiniquim, uma quase certeza dentro da eterna dualidade: a âncora está por demais enterrada, pintada já de verde/amarelo, na cara dos filhos e do amado (apesar do verde-encarnado, indelével, lá no fundo do peito)

No meio disso, uma singularidade: a daqueles que, assim como eu, aportados aqui ainda

 

 

 
meninos, tendo  completado sua escolaridade em terras brasileiras, decidiram um dia optar pela palavra como ofício. A língua é a mesma, mas a gramática e a praxis cultural não o são. Não se pode ser um escritor português escrevendo como um brasileiro. Passa-se a ser um escritor brasileiro que nasceu em Portugal. Muitos, propositada ou inadvertidamente, esquecem até mesmo esse detalhe; são escritores brasileiros, simplesmente. Mas eu pergunto: não teria o filho pródigo, antes mesmo de  pensar em regressar ao lar, sentido o desejo de enviar notícias suas ao pai? não gostaria ele de querer saber que o pai se interessa por sua vida? indagando de seus feitos?

Filho pródigo ou exilado? órfão de pai vivo? na ausência desse pai, assume-se o padrasto.

Antena e voz da raça, em qualquer parte do planeta, o escritor está sempre a denunciar o seu tempo e as suas misérias de ser humano, olhando o tempo todo para o avesso das coisas. Daí o inconformismo com certos detalhes que cotidianamente passam desapercebidos à maioria.

            Afora a saudade, sentimento próprio da raça, acreditamos que a diáspora portuguesa no Brasil está perfeitamente  integrada à sociedade brasileira.  Como bem o disse o prof. Tito Lívio Ferreira, "raça feita de raças (...), o português abrasileira-se no Brasil, africaniza-se na África, orientaliza-se na Ásia, americaniza-se na América do Norte, sem deixar de ser português na sua maneira-de-estar no mundo, sem perder a essência do seu portuguesismo" (l), e, como a completar-lhe o pensamento, acrescenta o também luso e ilustre prof. e homem da letras João Alves das Neves "Se o Brasil foi construído, no passado, com o sangue dos portugueses,o Brasil permanece hoje no sangue dos portugueses"(2).

            As possíveis mágoas é com o pai que, apesar dos sucessivos acordos repletos de boas intenções em criar caminhos de mão dupla nas relações culturais entre lusos e brasileiros, vem se esquecendo sistematicamente dos luso-brasileiros, que aqui vivem e produzem arte e idéias que não são veiculadas nem conhecidas em seu país de origem e tampouco são lembrados nos seus organismos oficiais no Brasil

 

COMUNICAÇÃO apresentada no I Encontro dos Intelectuais e Artistas Portugueses do Brasil, realizado na Casa Mário de Andrade, em S.Paulo, pelo Centro de Estudos Americanos Fernando Pessoa em 21, 26 e 27 de maio de 1990.  

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