DAlila Teles Veras |
seduzir para a poesia: a experiência do
grupo Livrespaço – 1983-1993
1982: após longos anos sob um regime autoritário e de exceção que, através do arbítrio da censura e da circulação do livre pensamento, em muito cerceou a produção artística, o país vivia a natural euforia da abertura política, com o surgimento de novos partidos e as eleições diretas para todos os cargos eletivos, inclusive governadores, com exceção da presidência da República, que viria consolidar-se com a campanha Diretas Já, dois anos mais tarde. A sociedade dá mostras e vontade de reorganizar-se e nascem novas perspectivas culturais. Em Santo André, SP, uma das cidades que compõem a região do Grande ABC, um grupo de trabalhadores da cultura, liderado por Denil Tucci, passa a realizar discussões periódicas e ações culturais, além de estratégias de intervenção na condução das políticas públicas da cultura municipal. Esses encontros propiciaram o encontro de várias pessoas ligadas à literatura, que, simultaneamente, se mobilizaram para protestar contra a censura nos Concursos de Poesia de São Caetano do Sul e de Contos de São Bernardo do Campo, promovidos naquele ano. O grupo mobilizou a opinião pública, provocando muito barulho. Poderosa bruxa devoradora da expressão artística, desta vez a censura serviu de alavanca de impulso de um processo que não teria volta. É nesse clima que surge uma proposta do proprietário de um recém-inaugurado café- concerto da cidade, que se propunha a funcionar também como um espaço cultural aberto a exposições, concertos, lançamentos de livros e outros atividades, apesar do reduzido espaço físico de suas instalações. Para alguns dos poetas participantes daqueles encontros, a idéia de mostrar no Café Livrespaço os seus trabalhos mostrou-se atraente e, convidados outros poetas, foi acertada uma mostra que, a princípio, teria a duração de 15 dias, durante a qual, os poetas realizariam recitais e noites de autógrafos. A receptividade foi grande e a mostra estendeu-se por todo o mês de abril de 1983. Ainda sem a configuração de grupo, os poetas participantes da mostra foram convidados por um representante da unidade do SENAC de Santo André que assistiu e achou interessante o evento e decidiu montar algo semelhante nas instalações daquela entidade. O público seria composto pelos próprios alunos dos cursos de formação de mão de obra técnica ali oferecidos. A partir dessa primeira idéia, foram também enviados convites a professores da rede estadual de ensino de 1º e 2º graus e de algumas escolas da rede particular, para que trouxessem os seus alunos à exposição no SENAC. A resposta foi surpreendente, com um surpreendente número de 1500 estudantes visitantes durante o mês da realização do evento. Ao invés de meros espectadores que ali compareceram para ler e ouvir poesia, os visitantes passaram interagir com a poesia e os poetas ali presentes, quer participando de discussões e palestras, exercícios de criatividade ou recitais. O interesse demonstrado também surpreendeu, não só por parte dos professores, mas também pelos estudantes que participaram ativamente de todas as atividades, indagando por sua continuidade. O evento no SENAC, verdadeiro balão de ensaio, mostrou que a intuição inicial dos poetas apontava para um caminho perfeitamente possível, ou seja, a sensibilização de crianças e adolescentes para a leitura. Com a experiência, a convicção adquirida de que a presença do autor, a relatar o seu processo de criação, sua bibliografia pessoal, sua trajetória de leitura, em muito contribuiria para a sedução para a poesia. Nascia ali o Grupo Livrespaço de Poesia que, em homenagem ao primeiro espaço que os acolhera, adotaria o mesmo nome, bem como também o embrião daquele que seria todo o eixo central da atuação do grupo durante os mais de 10 anos de sua atuação: um projeto voltado para a formação de um público leitor, que, a seguir, recebeu o nome de Encontro Poeta-Leitor. Pouco tempo depois o café fecharia suas portas, mas o grupo continuaria atuando por uma década. Com alguns dos seus integrantes remanescentes do chamado movimento de poesia marginal, o grupo Livrespaço teve a sensibilidade de perceber que, graças à mudança na conjuntura social e política do país, a chamada poesia marginal tinha os seus dias contados. O panfleto não era mais necessário. Necessário era aprimorar a palavra e buscar leitores. A gravidade desses propósitos, entretanto, afugentou parte dos 15 poetas que participaram das duas exposições e da 1ª coletânea (xerografada) patrocinada pelo SENAC (Cláudio Feldman, Dalila Teles Veras, Denil Tucci, Eduardo Di Angeli, Evaldo Luis de Oliveira, Ida Feldman, José Marinho do Nascimento, Jurema Barreto de Souza, Katsuko Shishido, Marcos Calil, Marcos Redondo, Maria Antonieta P. Carreira, Sérgio Augusto Alves, Marina Rolim e Thereza Cristina T. Santos – um sui-generis grupo de idades, dos 20 ao 50 anos). Permaneceram aqueles que, não só já encaravam a poesia como verdadeiro ofício, mas também comprometeram-se e empenharam-se em ir além do ofício, ou seja, exercer um outro papel, o de agentes transformadores, que encarassem a arte também como ato de resistência e participação social. A eles juntaram-se outros e o grupo passou a atuar por um bom tempo com os seguintes poetas: Cláudio Feldman, Dalila Teles Veras, Denil Tucci, José Marinho do Nascimento, Jurema Barreto de Souza, Katsuko Shishido (fundadores) mais Rosana Chrispim, Tônia Ferr e Margarita Anechina. Por curto espaço de tempo, dele também participaram Francis de Oliveira e Encarnacion Melgar. O passo seguinte foi levar a idéia de um projeto de encontros em sala de aula para a 2ª Delegacia de Ensino do município que, surpreendentemente, graças à visão da então delegada Vitória Helena D´Espósito, acatou a idéia e colocou os poetas em contato com os professores de língua e literatura da rede de ensino, aos quais juntaram-se outros de outras áreas, como história e geografia, mas igualmente interessados na idéia do projeto. Nessa primeira reunião, realizada em 23 de agosto de 1983, durante a qual foi esmiuçado todo o projeto e suas intenções, inscreveram-se professores de 19 escolas. O projeto foi iniciado imediatamente (na última semana daquele mês) e até novembro do mesmo ano, foi levado às sala de aula de 15 escolas da rede pública, 2 Faculdades de Letras e 1 Centro Educacional do SESI, com um total aproximado de 7.500 estudantes participantes. O fato resultou numa verdadeira revolução poética, invadindo com lufadas de palavra nova os vetustos espaços educacionais. No dizer de um ex-aluno participante: uma verdadeira epifania. O projeto continuou nos anos seguintes com a mesma intensidade, estendendo-se para as escolas da 1ª Delegacia do município, estabelecimentos de ensino particulares, faculdades, bibliotecas, sempre atingindo um número surpreendente de pessoas (1984= 5.870; 1985= 3.500 e assim por diante). Toda uma metodologia passou a ser desenvolvida pelos poetas, no sentido da elaboração de estratégias que envolvessem os estudantes, através da elaboração de exercícios de sensibilização e criação, utilizando tanto textos de autores já considerados clássicos, quanto os dos próprios poetas. Sem se limitar à questão literária, a abordagem sobre outras artes como a música e as artes visuais entrava na discussão e nos exercícios, fazendo com que aqueles com mais sensibilidade para outras manifestações participassem da mesma forma. Em todos os encontros, os poetas provocavam desdobramentos, no sentido de garantir uma continuidade, ou seja, murais, varais com os poemas produzidos nos encontros, e até concursos entre os próprios alunos, cujos resultados eram publicados em brochuras que eram lançadas em tardes de autógrafos com a participação de familiares. Após cada encontro, os professores receberam questionários de avaliação da passagem dos poetas na escola, formando importante “feed-back” para o norteamento do trabalho. Importante ressaltar que todo esse trabalho de oficinas nas escolas não contou com nenhum recurso material do poder público, apesar das promessas iniciais da Secretaria de Educação e Cultura de Santo André que divulgou o seu apoio ao projeto, mas jamais compareceu com qualquer espécie concreta de apoio, sequer tendo contribuindo para o transporte dos poetas até as escolas. Tudo, absolutamente tudo, foi realizado com os recursos dos próprios poetas. Mas o irrequieto e altamente produtivo grupo de poetas não se limitou ao projeto Encontro Poeta-Leitor. Oficinas internas, entre os próprios poetas, ocorriam nas suas religiosas reuniões semanais, onde tardes inteiras de sábados eram consumidas em intermináveis discussões. O grupo testava internamente os exercícios que seriam aplicados com os estudantes. Dessas discussões e oficinas decorreram a publicação de mais 4 livros coletivos (duas antologias e duas coletâneas temáticas) resultando na criação das Edições Livrespaço. Todos os poetas continuaram a publicar individualmente os seus livros. Duas coleções de posters poéticos ilustrados também foram publicadas e, finalmente, em 1992, a publicação da Revista Livrespaço que circulou bimestralmente, durante dois anos, em todo o Brasil e exterior e recebeu o prêmio APCA da Associação Paulista de Críticos de Arte. A proposta editorial da Livrespaço era de uma abrangência pouco vista numa época em que a maioria das revistas e jornais literários alternativos que circulavam no país ainda limitava-se a publicar apenas poemas. Além de resenhar criticamente poetas de todos os estados brasileiros, a revista abriu espaço, na seção Campus, para artigos acadêmicos sobre literatura, poesia visual (segmento artístico pouco divulgado na época), traduções, uma seção de resgate de nomes importantes da literatura brasileira e de obras fora de circulação e de catálogo. A cada número, uma entrevista com um nome de notória representatividade da literatura brasileira. Ocuparam as páginas dos oito número da revista as idéias e opiniões de Ferreira Gullar, José Paulo Paes, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Thiago de Melo, Olga Savary, escritores, do bibliófilo José Mindlin e do dramaturgo Luís Alberto de Abreu. A revista circulou apenas via correio – assinaturas e cortesias – e no velho sistema mão-em-mão, herança da poesia marginal da década anterior. A cada número era convidado um artista plástico responsável pela capa e ilustrações. Em troca, a revista divulgava a biografia e abordagem crítica da obra do artista contemplado. Em maio de 1985 o grupo promove a I Semana Livrespaço, evento que chegaria até a VI versão, em 1992, ocasião em foram comemorados os 70 anos da semana de arte moderna, com uma re-leitura dos modernistas, em diversas áreas de expressão artística (literatura, música e artes plásticas). É nessa ocasião que, pela primeira vez, o grupo conta com o patrocínio oficial da Administração Pública Municipal. A Prefeitura de Santo André bancava o patrocínio do material de divulgação (convites e cartazes) e oferecia um pequeno cachê aos conferencistas. Nomes como Lygia Fagundes Telles (que superlotou o Teatro Municipal de Santo André em 1985), Fernando Morais, Marcos Rey, José Paulo Paes, Oswaldo França Júnior, Ricardo Ramos, Cláudio Willer, Ênio Squeff entre muitos outros) fizeram palestras e participaram de mesas de debates à noite, enquanto durante as tardes eram realizadas oficinas de criação com o público interessado. Todas as atividades das Semanas Livrespaço foram realizados nos equipamentos da Prefeitura, no Paço Municipal (Teatro, Auditório, Saguão e Biblioteca). Era a vez, então, de inverterem-se os papéis: ao invés dos poetas irem onde o povo estava, o povo ia encontrar-se com eles para, mais uma vez, ser celebrado o encontro entre o poeta e o leitor. O Grupo também participou ativamente das Feiras do Livro que, na década de 80, eram realizadas no saguão do Teatro Municipal, pela Prefeitura Municipal de Santo André. Ali, mais uma vez, o grupo compareceu com estande, organizando concursos de poesia, lançamentos de livros, bem como recitais e debates com o público. Além da atividade literária propriamente dita, o Grupo também desenvolveu preponderante papel na vida cultural da cidade, contribuindo com discussão e sugestão de linhas de políticas públicas de cultura para o município. Participou ativamente de fóruns de cultura e, ainda, como braço da União Brasileira de Escritores na região do ABC. Em 1993, no entanto, reduzido à participação de apenas 6 elementos (Cláudio Feldman, Dalila Teles Veras, Jurema Barreto de Souza, J. Marinho do Nascimento, Rosana Chrispim e Tônia Ferr) o grupo, sem a mesma disponibilidade de tempo para continuar publicando uma revista que exigia constante atualização e debate, sem contar a animação cultural, decide dissolver-se, não sem receber pedidos insistentes para continuar. À sua maneira, no entanto, todos os membros do Grupo deram/dão continuidade a esse trabalho, sob novas facetas e colorações. Jurema continuou publicando A Cigarra que, à época, não passava de um fanzine xerografado, agora transformado numa revista de grande sofisticação gráfica. Cláudio continua coordenando oficinas de criação, mas agora sendo remunerado e, inveterado marginal, vendendo seus livros à porta de teatros. Dalila fundou a Alpharrabio Livraria Espaço-Cultura que, ao longo dos últimos 8 anos, discute e promove intensamente a cultura regional, contando com um currículo de agitos culturais que incluem debates, palestras, recitais, concertos, oficinas, publicações, sendo que um segmento da livraria é a Edições Alpharrabio que já conta em seu catálogo com mais de 50 títulos. Marinho seguiu sua vocação de professor e continua a ensinar e seduzir para a leitura, agora mais disciplinadamente, mas com o mesmo fogo da paixão pela literatura de antes. Tônia, descobriu-se compositora e atriz e divide o seu agora folgado tempo de septuagenária entre o fazer poético, a música e o teatro. Rosana foi para Campinas cuidar da carreira dentro de uma multinacional que lhe permite criar, ainda que seja em cima de catálogos técnicos para automóveis mas, ainda assim, continua a fabricar poemas. Todos continuam fiéis à poesia, sedutores seduzidos irremediavelmente.
Bibliografia: Antologia Livrespaço/Senac, 1983, Santo
André (edição artesanal)
Coletânea Livrespaço, Edições Livrespaço, 1984
Literatuando (coletânea) Edições Livrespaço, 1985
Subvertida Palavra (coletânea) Edições Livrespaço, 1988
Sete versus Sete (coletânea) Edições Livrespaço, 1990
Jornal Diário do Grande ABC (1983-1993) Texto apresentado no Encontro de Escritores e
Intelectuais Portugueses no Brasil, no Centro Cultural Dragão do Mar, em
Fortaleza, CE, em 2.6.2000, promovido pelo Centro de Estudos Americanos
Fernando Pessoa, de São Paulo,
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