DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 A evocação de Oswald

Apesar dos trocentos tratados e achômetros que compõem a hoje grandiosa fortuna crítica de Oswald de Andrade,  surgida em sua grande parte em 1990, ano em que se comemorou o centenário de seu nascimento, ocasião em que o escritor  e sua obra foram presença  obrigatória em todos os cadernos literários e espaços culturais do país, arrisco-me a voltar a ele, homenagem atemporal, desligada de efemérides, uma vez que, passada a festa e o porre de Oswald de mídia à época, seus livros voltaram para a prateleira, assim como ocorria em vida do autor, biscoitos finos demais para uma de fast food.

Para o “garoto propaganda da Semana de 22”, que, na opinião de Otto Lara Resende, "possuía o senso do espetáculo", não deve ter sido fácil terminar a vida melancolicamente, com a frustracão de jamais ter visto encenada uma peça sequer das muitas que escreveu. Seu livro “Serafim Ponte Grande” (que junto com “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Poesia Pau Brasil”, representam o melhor de sua obra de acordo com Antonio Candido), até o momento de sua morte, encontrava-se impresso em uma pequena edição, mal distribuída, assim como os outros livros seus que até então não haviam ultrapassado tiragens de 500 exemplares.

Poderíamos dizer aqui que Serafim Ponte Grande radicalizou o que em Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald já inaugurara, ou seja, o romance invenção, de cortes cinematográficos. Ainda assim, um romance. Mas isso tantos já disseram. Ou dizer, ainda, que Serafim é um "grande não-livro", parafraseando o próprio autor, ou "um livro feito de pedaços ou amostras de vários livros possíveis" mas isso também foi o Haroldo de Campos quem disse.

Seria possível talvez falar aqui da hoje já quase mitológica vida de Oswald, que o tempo todo se confundiu com a arte, mas isso também não seria inédito, pois Antonio Candido cedo descobriu que de um homem como Oswald podemos dizer que a existência é tão importante quanto a obra, ou ainda, que Oswald criou uma filosofia de vida chamada antropofagia e mais uma vez isso não seria meu pois é de José Paulo Paes.

Sacralizado na década de 90, quarenta anos após a sua morte, Oswaldo continua um escritor maldito, ainda não deglutido nem saboreado o suficiente até os dias de hoje, conforme era seu desejo (era mesmo?).

Antes de enveredar por caminhos que certamente me fariam ganhar do nosso Oswald a peja de "chata girl", escapo de qualquer formalidade crítica e tento, aqui, uma singela e desajeitada homenagem antropofágica, ao criador da própria:

 

SERAFIM OSWALD PONTE GRANDE DE ANDRADE 

POR ELE MESMO

 “O Brasil é uma República cheia de árvores e de gente dizendo adeus. Salvas de canhão anunciam o feriado nacional. Não vou à parada. Estou ficando anti-militarista. Meu caro amigo, o Brasil é isso. Daqui a vinte anos os Estados Unidos nos imitarão. Modéstia à parte, tenho um canhão e não sei atirar. Mas, para defender a liberdade de pensamento, eu iria às barricadas! Amorosamente, passionalmente, raivosamente, iradamente, tenho atirado a esmo contra certeiros alvos. Cérebro, coração e pavio. Sei o que não quero: o provincianismo, a literatura brasileira de vanguarda suspeita. Ao contrário do deles, o meu relógio anda sempre pra frente. Poeta da radicalidade, sempre vou até as últimas conseqüências, mas às vezes sou tomado de um desânimo enorme e por pouco não durmo no banco da Praça da República e de repente descubro que o Brasil é parecido com aquela praça. Sim muita gente dizendo adeus. Digo eu mesmo adeus aos meus sentimentos e observo os acontecimentos. Simplesmente, passo a relata-los. Narrador e personagem, dispenso  comentários. Observo: Lalá passou mal a noite... Não morreu... Vi um sujeito morrer... Passei o dia de fraque... Empreendo uma viagem a bordo de um barco a querosene e vela, luxuoso e rápido paquete e, na ausência de bons livros leio o dicionário de bolso da lavra do meu secretário José Ramos Góis Pinto Calçudo, um inventário das pessoas que ele conheceu (ou conhecemos?). Descubro também que há muito mais gente boa por aí do que se propala. A felicidade do homem é uma felicidade guerreira. Viva a rapaziada! O gênio é uma longa besteira, por isso mesmo, lanço-me, mar a fora, a sucessivas aventuras que não acontecem. Aproprio-me de tudo, inclusive de todas as mulheres, elaboro um manual de paixões. Kamiá rainha dos estudantes de Montmartre, Carmem Lídia bailarina Landa, Miss Daisy normalista Cyclone, Tarsila Abapuru Amaral, Patrícia Pagu Galvão, Pilar Ferrer, Dona Lalá, Julieta Guerrini, Isadora Duncan e, em últimas núpcias, cântico dos cânticos, reencontro materno, Maria Antonieta d´Alkmin. Burguês, faço conferência na Sorbonne; comunista, no Sindicato dos Padeiros. Rico num momento, pobre noutro, rico novamente e, fatigado das minhas viagens pela terra, de camelo e táxi, escrevo um não-romance, o necrológio da burguesia, tentendo ao anarquismo enrugado, epitáfio do que fui, apropriando-me sem escrúpulos das frases feitas e do ridículo da sociedade tupiniquim, escrito de 1929 (era de Wall-Street e Cristo) para trás.

Encerrei, em 1954, o ciclo de minha vida com a frase lapidar de um poeta: Fim da dor.

Estava certo de não deixar contemporâneos, mas não calculava os inúmeros órfãos que deixaria. Concretos, tropicalistas, pós-concretos, visuais, todos em busca de possíveis retalhos que deixei pelos caminhos que percorri, canhão sempre pronto e em chamas”.  

Texto apresentado na mesa de debates "SERAFIM PONTE GRANDE, O LIVRO NÃO LIVRO", dentro do Evento Retalhos Imortais do SerAfim, no SESC Consolação, 16 a 21 de outubro de 1995  

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