DAlila Teles Veras

Crônicas

 

CRÔNICA DE OUTONO

 

Estamos entrando no inverno e não me lembro de outono de luz tão intensa quanto este que se finda. Indiferente às pontes que ameaçam cair, aos assassinatos diários, às CPIs e aos escândalos do dia, a natureza segue o seu curso, pouco se lixando para o que os homens estão fazendo com ela, oferecendo-lhes o espetáculo da luz que, de tão profunda, rompe as nuvens de poluentes, inundando a cidade como um cálido abraço de namoro em começo.

As tardes são convite a andar pela cidade. Bom observar os passantes, com as suas diferentes reações à temperatura ambiente. O sol a pino e a temperatura baixa enganam alguns que arriscam um vestuário de verão. Meninas de barriguinha de fora, insensíveis à fria aragem outonal, desfilam ao lado de senhores de sobretudo e senhoras de cachecol, como se em países distantes estivessem. O que a pouca idade mostra a muita idade esconde e protege. Não fosse o medo, a rua seria a mais verdadeira prática da democracia.

Ao meu lado, duas senhoras discutem acaloradamente a escolha de um determinado presente. Diz uma delas, referindo-se à pessoa a ser presenteada: "Imagine você, ela é tão chata que nem ao menos admite uma televisão no quarto!". Democracia, admitamos, também tem limite. Senti a punhalada em cheio nas minhas costas. Eu, que nunca vislumbrei a possibilidade de colocar uma televisão no quarto e raramente me lembro de ligar a da sala. O rótulo da exclusão estava, assim, colado à minha pele. A única coisa a nos unir era aquela luz intensa de outono.

A humanidade separada entre os chatos que gostam de televisão e os chatos que não gostam de televisão. Ao olhar do outro, somos todos uns chatos e excluídos, ainda que um dia luminoso nos envolva e acaricie.

E a minha crônica vai bebendo desta cidade que, assim como no começo deste século, ainda se mostra futurista, deslumbrada com a máquina. Observo a multidão, que olha, mas não compra, que come o cachorro quente de cheiro nauseabundo, na esquina da Dona Luíza Fláquer, ali, onde o meu personagem predileto, o louco da Oliveira Lima - aquela figura que há muito faz parte de nossa paisagem - tira do bolso um molho de cartas das quais lê, em voz alta, alguns trechos para um interlocutor hipotético. Quem as terá enviado? Teria ele, no seu mundo onírico, enviado as cartas a si mesmo? Alguns trechos soam parecidos com as receitas de felicidade de livros de auto-ajuda. Teria ele testado alguma e, não a alcançando, preferiu enlouquecer?

Termino o passeio meditando. Estarão os nossos escritores, os nossos artistas, assim como o fizeram os escritores e artistas do século XIX, registrando este olhar sobre a cidade e seus transeuntes apressados que disfarçam em passeio o seu forçado ócio de desemprego e mendicância?

 

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