Sobre
poesia, ainda
1. A
hiperexposição de tudo que pensamos, sentimos, imaginamos, no
tempo real das redes sociais, blogs etc., obriga a poesia a
procurar outra coisa para fazer? Se não, por que a poesia não
se confunde com isso? Se sim, que outra coisa seria essa?
Todos sabem
que a lógica que rege o mundo virtual é, via de regra, a da
velocidade, da comunicação imediata e, sobretudo, do excesso
de informação que, justamente por sua capacidade infinita de
simultaneidade, aliada à dificuldade do receptor em
estabelecer filtros e conexões, acaba transformando esse quase
tudo em quase nada. É também a lógica do uso (quase)
obrigatório da imagem que, de tão banalizada, já não se deixa
ver e, pela overdose, não vale as alegadas mil palavras.
Já a poesia é
composta por outra substância. Seu código é o da contravenção,
um código que não permite ser decifrado de soslaio nem
distraidamente. O tempo da poesia não é o do fast-food.
Requer mastigação macrobiótica, tanto por quem a produz quanto
por quem a lê.
Assim como
não concorre nem mesmo com os outros gêneros literários, a
poesia percorre caminhos diversos e procurará sempre por outra
coisa, outro tom, a outra voz, ela própria.
Em que pese
todas essas diferenças, como usuária contumaz das redes
sociais e do meio virtual em geral, acredito também que não
haja incompatibilidade entre entre a veiculação da poesia e
esses meios de comunicação. Se o papel da poesia é o da
contravenção, o poema sempre encontrará formas de se valer do
próprio meio para negar a lógica de que esse meio seria a
mensagem, até porque não existe "poesia da internet" ou
"poesia do livro", mas poesia, boa ou má, independente do
suporte em que é veiculada.
O poema solto
na rede tem a mesma função do amendoim que o vendedor
ambulante oferece ao veranista na praia, ou seja, mera prova.
Um a cada cem será fisgado pelo sabor e, êpa! chama o
vendedor, adquire um saquinho (ops! um livro), consumindo-o
por inteiro.
O espaço
virtual pode contribuir, sim, para ampliar os historicamente
poucos leitores de poesia, considerando-se que uma só postagem
pode atingir um número de pessoas muito superior ao de uma
tiragem média de livro de poesia em papel.
Assim como a
Internet efetivamente contribui para um jornalismo
independente, com a notícia não mais vinculada ao dono do
jornal, oferecendo muitas vezes a notícia em tempo real, sem
cortes nem edição, oferece também a possibilidade dos autores
falarem diretamente com eventuais leitores bem como com seus
pares, recebendo quase que instantaneamente apreciações
críticas de leitura.
Na
impossibilidade das conversas da tarde nas livrarias do
passado, esses espaços foram transferidos para as conversas
noite adentro nas redes sociais. Algumas, convenhamos, tanto
quanto aquelas, apresentam inconvenientes, mas sempre haverá
um meio de afugentá-los.
2. A
dificuldade para encontrar o tal lugar da poesia no mundo leva
os poetas a “em vão e para sempre repeti[rem] os mesmos sem
roteiro tristes périplos”?
Não há
caminhos fáceis na poesia e a busca das chaves obriga o poeta
a percorrer vielas tortuosas, justamente para não se limitar a
diluir os roteiros já estabelecidos e as viagens de
circunavegação.
3. O poeta
continua a ser um fingidor e a poesia, um “fingimento
deveras”?
Sendo a
poesia recriação do visto e do sentido e o próprio significado
semântico e etimológico de fingimento remete a dar forma,
imaginar e tomar aparência de, o poeta, que pinta de cores
novas o real e modela as palavras como o oleiro com a argila,
pelas artes do ofício, será sempre um fingidor. E como todo
esse processo não se desgruda da essência humana, será sempre
um "fingimentos deveras".
4. “Tenho
que dar de comer ao poema./ Novas perturbações me alimentam:/
Nem tudo o que penso agora/ Posso dizer por papel e tinta”. Do
que seus poemas têm fome?
Meus poemas
têm fome de humanidade e, contrariando o poeta, podem dizer o
que penso ainda que eu, através do artifício da linguagem,
induza o leitor a pensar que é ele que assim pensa. A função
do poema, originada nas fomes, é justamente provocar outras
fomes. Meus poemas têm fome do mundo que me cerca e das coisas
que, de alguma forma, me perturbam e desassossegam.
5. Indique
UM poema que lhe parece, hoje, especialmente fazer todo o
sentido. Por q
Escolhi um
poema de Gastão Cruz, poeta e crítico português que muito
admiro e de quem há muito sou leitora, não só por sua
admirável e rigorosa prática do que ele mesmo chama de
"consciência linguística vigilante", uma qualidade que o faz
dizer tanto com tanto pouco, como também por me identificar
com sua visão um tanto quanto pessimista de mundo. Este poema
faz todo o sentido nestes dias sombrios que
atravessamos.
NOSSO TEMPO
Não se pode
escolher para o silêncio
uma cidade
ouvida quando os dias
como
estranhas fachadas se separam
Ó tempo
verdadeiro, para a nossa ruína
um céu de
nuvens baixas
As
Pedras Negras, Relógio D´Água, 1992