SELMO VASCONCELLOS - Quais
as suas outras atividades, além de escrever?
DALILA TELES VERAS - Dirijo, desde
1992, em Santo André, SP, a Alpharrabio, Livraria e Espaço
Cultural com intensa e ininterrupta atividade (www.alpharrabio.com.br)
voltada à divulgação e o fomento artístico, bem como ao debate
cultural. Coordeno, desde 2007, o Fórum Permanente de Debates
Culturais do Grande ABC, que tem o
objetivo de criar um processo participativo e crítico das
políticas públicas da cultura e da ação cultural integrada na
região do ABC, SP.
SELMO VASCONCELLOS -
Como surgiu seu interesse literário?
DALILA TELES VERAS - Meu interesse
literário surgiu naturalmente da leitura. Frequentei o curso
primário em Portugal e não me lembro de ter lido nenhum da
hoje chamada "literatura infanto-juvenil". Tão logo me
alfabetizei, lia os clássicos portugueses, principalmente os
poetas, que declamava nas festas escolares, com entusiasmo e
devoção. Talvez venha daí o meu interesse. Não existe um
escritor sem, antes, existir um bom leitor. Acredito que
fui/sou uma boa leitora.
SELMO VASCONCELLOS -
Quantos e quais os seus livros publicados?
DALILA TELES VERAS - A lista é
extensa, já ultrapassa as duas dezenas. Ainda que tenha
publicado livros de crônicas e ensaios, minha expressão
principal é a poesia. Nesse gênero, publiquei 14 livros, dos
quais eu destacaria À Janela dos Dias – poesia quase toda
(Alpharrabio Edições, 2002), livro que marca os
meus 20 anos de publicação literária, Retratos Falhados
(Coleção Ponte Velha, Ed. Escrituras, SP 2008) e Estranhas
formas de vida (Dobra Editorial/Alpharrabio, SP, 2013). Tenho
"no forno" um novo livro, a sair brevemente pela Dobra
Editorial/Alpharrabio, "Solidões da memória".
SELMO VASCONCELLOS -
Qual (is) o(s) impacto(s) que propicia(m) atmosfera(s)
capaz(es) de produzir poesias?
DALILA TELES VERAS - Minha poesia
é marcadamente urbana, ou seja, sou uma poeta contaminada pelo
"real" por mais que esse real nos pareça inverossível. Os
problemas do próximo, as mazelas sociais, as contradições das
grandes cidades estão muito presentes na poesia que pratico.
Por convicções humanistas, não consigo ficar indiferente a
esses cutucões que me atingem diuturnamente. Filiei-me a uma
corrente poética que, no dizer de Gastão Cruz, poeta e crítico
português de quem sou leitora, mantém uma "consciência
linguística vigilante, ou seja, persigo a concisão, que só é
atingida por essa "vigilância" permanente, a palavra domada. A
memória e a identidade, com frequência, também são matéria
para minha poesia.
SELMO VASCONCELLOS -
Quais os escritores que você admira?
DALILA TELES VERAS - São
incontáveis, inclusive meus contemporâneos. Ficaria,
entretanto, apenas com os poetas e com aqueles que já não
estão entre nós, mas que sigo relendo sempre com renovado
interesse: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João
Cabral de Melo Neto, trio imbatível e insubstituível que
junta-se a Oswald de Andrade, José Paulo Paes, Murilo Mendes,
Cecília Meireles e Orides Fontela. Dos portugueses: Camões,
Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de
Andrade, Alexandre O´Neil, Manuel António Pina, Fiama Hasse
Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Ruy Belo e dezenas de outros,
vívissimos e atuantes.
SELMO VASCONCELLOS -
Qual mensagem de incentivo você daria para os novos poetas?
DALILA TELES VERAS - Leia, leia,
leia. Depois, leia um pouco mais.
Poemas de Dalila Teles Veras:
pontes
viaduto por cima de viaduto,
pontes entre pontos, teia de concreto a conduzir progresso e
abrigar misérias. idas e vindas, permutas e velocidade a
esconder a escória. por cima o automóvel e o céu (ouro a
fulgir), por baixo a cidade, o homem e o seu inferno (cheiro
de enxofre e urina) tempo antevisto, passantes de rastros,
vermes rejeitados, condenados ao chão da selva escura, na
eterna dúvida em ser homem ou sombra, mas sem um só poeta como
guia. da pinguela à passarela, da ponte ao viaduto, do
propósito da passagem à condição de estar por baixo, o homem,
excluído dos outros homens, o homem e seus próprios
excrementos, o homem, via única de incomunicabilidade e
danação
becos
quem tem caminho reto não se mete
em vereda, aconselhava-me a mãe, o medo do sobressalto a
escorrer do afeto, sem saber que as descobertas se revelam
apenas no entrecruzar do caminho e a conquista à saída do
labirinto
os becos e seus inocentes nomes de
santos não atendem à demanda de mercado, insignificantes
artérias esquecidas, deixam que a cidade cresça ao seu redor e
ficam ali, pulsantes e vingados, tênues sopros de resistência
e muda contestação, negação ao gigantismo, sedução para o não
cumprimento do conselho
as faxineiras do edifício
surpreendentemente
(não obstante os dez mil,
quatrocentos e trinta e um degraus, os oito mil, trezentos e
vinte metros quadrados de piso, as quatrocentas e quinze
vidraças e as três toneladas de lixo à espera de varrição,
transporte e limpeza)
cantam...
identidades
“Com
meus sonhos de menina"
Triste Sina, Jerónimo
Bragança / Nóbrega e Souza
quinze anos e dúvidas
(para além das usuais)
a menina
com duas mães, cresceu
biológica, uma
(que a gerou, pariu e amamentou)
companheira da mãe, a outra
a mãe que a gerou, pariu e
amamentou
mudou de gênero e identidade. a
menina passou a chamá-la de pai
(volta e meia, ainda lhe escapa um
mãeeeê!...)
vidas falseadas
“Ao nascer trouxe uma estrela
Nela o destino traçado
Não foi desgraça trazê-la
Desgraça é trazer o
fado”
Não é desgraça
ser pobre, Norberto Araújo
mal
decorriam os dias
conviventes em desamorosa
miséria
mal
sucediam as noites
nos corpos jovens, na
tenra vida em comum
(sonhos desfeitos em
mal contidos silêncios)
como salvar o que perdido está?
como legitimar o que falseado já
era?
(um bebê! convite à salvação...)
barriga postiça, plano engendrado
inscreveu-se no corpo de
voluntárias
na tarde plácida
ao colo da falsa mãe
sai do abrigo o menino
(filho do infortúnio
refém de seu próprio fado)