|
Entrevista concedida (através de
emails) a Álvaro Alves de Faria, posteriormente inserida no livro Pastores
de Virgílio – A literatura na voz de seus poetas e escritores
(Ed. Escrituras, SP, 2009
- Álvaro Alves de
Faria – Dalila, você está inteira no livro À janela
dos dias – poesia quase toda (Alpharrabio, 2002). Um resumo
de você, se é que isso possa ser entendido assim. Não sei
muito das coisas que devem ser entendidas ou não. Esse livro
me toca profundamente, pela poesia que contém e porque somos
amigos desde adolescentes. Como começou essa poesia que você
faz hoje, quando houve a primeira manifestação de ser poeta
?
Dalila Teles Veras
– apesar de escrever poemas desde menina, devo confessar que
a consciência do ofício literário aconteceu-me tardiamente,
tanto que o meu primeiro livro publicado data de 1982, aos 36
anos de idade quando já havia publicado mais de uma centena
de poemas, ao longo de duas décadas, em jornais escolares e
na chamada imprensa alternativa.
Ainda assim, a poesia
que praticava à época não demonstrava nenhum compromisso
mais sério com a literatura.
A
fase aguda da opção pelo ofício e escolha estética nasceu
durante as atividades com o Grupo Livrespaço de Poesia
(1983-1993), do qual sou co-fundadora. As discussões semanais
entre os poetas do grupo, aguçaram minha curiosidade e me
levaram a leituras que acabaram por modificar o meu modo de
encarar o fazer poético. Octavio Paz (Filhos do Barro
e O Arco e a Lira), foi uma referência preponderante
da época.
Em 2002, 20º
aniversário de publicação do meu primeiro livro, surgiu a
idéia de publicar uma espécie de antologia pessoal que
resgataria poemas publicados em livros de tiragens reduzidas e
completamente esgotados, além de boa parcela dispersa por
jornais e revistas literárias. Porém, quando iniciei o
trabalho de seleção, dei-me conta de que o exercício dessas
duas décadas operara transformações na forma de me
expressar poeticamente. Tinha plena razão o Pessoa: "há
vinte anos!... O que eu era então! Ora, era outro...".
Assim, norteada também pela palavra de outro genial escritor,
o argentino Jorge Luis Borges ("Se falamos que algo está
mudando, não estamos dizendo que algo é substituído por
outra coisa. Dizemos: ´a planta cresce´. Não queremos dizer
com isto que uma pequena planta deva ser substituída por uma
maior. Queremos dizer que essa planta se transforma em outra
coisa") não resisti à tentação de reescrever os
poemas "preteridos", ao invés de selecionar
simplesmente os poemas "preferidos". Não era
intenção substituir aqueles poemas por outros melhores
(afinal, sequer tenho certeza de que os fiz melhores), mas,
como diria ainda Borges, simplesmente mostrar algumas
possibilidades de transformação, já que depois de duas
décadas de exercício poético, o meu discurso era outro, em
função da própria experiência de vida e da
experimentação de outras formas de dizer.
No
decorrer do processo de reescrita, percebi que o resultado
não mais seria o de uma antologia, mas de um livro novo, com
uma certa unidade de linguagem, possibilitando uma nova
leitura dos velhos poemas (em especial dos 3 primeiros
livros).Acredito, portanto, que aquela reunião de poemas, À
janela dos dias – poesia quase toda (Alpharrabio
Edições, 2002), represente uma síntese de minha trajetória
poética até ali, assumindo influências (quem delas escapa?)
sem, no entanto, me filiar a qualquer grupo, cânone ou
geração, mesmo porque, no meu modo de ver, a segunda metade
do século XX não produziu gerações literárias, mas vozes
dissonantes que retiraram da tradição, do modernismo e das
vanguardas apenas aquilo que mais lhes interessou. Diálogos
apenas, uma espécie de marca comum do seu tempo, que acabam
por estabelecer um certo parentesco planetário entre aqueles
que estão preocupados em construir uma obra através da
palavra escrita, seja lá qual for a língua em que se
expressem.
AFF
-Dalila, acho bastante duro ouvir você dizer que a
segunda metade do século 20 não produziu nada em relação
à poesia, só "vozes dissonantes", como você diz.
O que é isso? Você me dá a entender que ignora tudo, por
exemplo nomes como Hilda Hilst, Adélia Prado, Dora Ferreira
da Silva, para citar apenas três, e ainda os poetas que
começaram a publicar nos anos 60, especialmente em São Paulo
e Rio de Janeiro. Diante desse nada, desse vazio que você
indica, como você situa a poesia que você produz
?
DTV - Talvez eu tenha
me expressado mal, mas eu não falei de "vazio",
falei na inexistência de "gerações literárias"
no sentido de uma estética, de recursos formais únicos que
as possam identificar. Quando falo de "voz"
remeto-me ao conceito de Octavio Paz, no sentido da
singularidade na poesia moderna. É justamente o conjunto
dessas vozes, de "sotaques" vários, que é
constituída nossa literatura. Esses nomes que você cita e
que eu reconheço serem da maior grandeza, são "vozes
dissonantes" porque utilizam procedimentos estéticos
diversos, ainda que, cronologicamente pertençam à mesma
"geração". José Paulo Paes, outro poeta da mesma
grandeza, diria, que essas três poetas, tanto quanto ele,
sofreram da "fatalidade cronológica". O Século XX
foi o século das rupturas e, com isso, conquistou-se a
independência, inclusive, em relação à ruptura do culto à
ruptura e dos rótulos cronológicos, aquilo que Paz chama de
arte da convergência, traço acentuado nas últimas quatro
décadas. E isso, antes de significar o vazio, revela a
totalidade. A minha poesia, tanto quanto posso julgar,
situa-se exatamente nesse contexto, como já disse, sem
filiações, assumindo influências as mais diversas.
AAF
- Sua poesia continuou sofrendo mudanças após À janela dos
dias?
DTV
- Desde então, publiquei mais 4 trabalhos: vestígios
(2003), um trabalho que repercute a experiência de um
rito de passagem, ou seja, a perda de minha mãe. Levei um ano
com os originais em mãos, retirando excessos, tentando deixar
ali, naqueles vinte e tantos poemas, apenas a poesia, a dor
transmutada em literatura, fruto de uma intencionalidade
estética. Este pequeno livro marca uma nova fase na minha
trajetória poética. Finalmente a minha voz, aquela de há
muito esboçada, mas que, a partir daí, possa ser
identificada como minha, represente ela vivências espirituais
ou urbanas, possa ser avaliada como boa ou má, mas aquela que
me foi possível; solilóquios (2005), uma pequena
reunião de poemas nos quais, assim como em vestígios,
abordo questões, digamos, metafísicas, fruto da busca (e da
quase impossibilidade) do silêncio na metrópole; poesia
no intervalo (2005), um trabalho que difere dos demais,
posto que o texto não sofreu nenhum tipo de reparo. Resultou
de uma experiência interessante com o artista Guedo Gallet, a
partir de um desafio que lhe fiz de, nos fins de tarde, na
Livraria Alpharrabio, cada um a uma mesa, café regado a muita
conversa, sem que um visse o que o outro fazia,
transformaríamos nossa conversa em um diálogo artístico
(desenho e escrita), um diálogo retirado de diálogos. O
fac-simile dos dois cadernos de 20 folhas cada, devidamente
preenchidas foi transformado em um álbum semi-artesanal, de
capa dura; Pecados (2006), um conjunto de poemas
acompanhado de desenhos de sete diferentes artistas, que há
tempos aguardava publicação, comemora meus 60 anos de idade.
Todos os trabalhos desta fase (de 2003 a 2006) foram
publicados sob a chancela Alpharrabio Edições, Santo André,
SP, com projetos gráficos diferenciados, tiragem limitada
(variando entre 200 e 300 exemplares), numerados e
autografados. Frente à realidade da indústria editorial
globalizada, com sua perversa lógica imposta pelo voraz
mercado consumidor, que lida com milhões de exemplares,
optamos, como forma de resistência, por essa maneira, sem
pressa, de buscar alguns leitores especialmente interessados,
ainda que essa atitude possa soar como romantismo fora de
lugar.
Após
mais de três décadas de buscas, hoje me sinto mais à
vontade quando crio em cima de um tema a que eu mesma me
proponho, como forma de disciplina e prazer de lidar com a
palavra. Trabalho, no momento, em num livro denominado
"Retratos Falhados", tentativa em desvelar a
metrópole e seus personagens insólitos, numa volta ao poema
em prosa, de caráter urbano, presente no meu livro A
palavraparte, de 1996. Escrever (e publicar) livros, já
dizia o Eclesiastes, é tarefa sem fim.
AAF
- Na pergunta anterior eu falei na "primeira
manifestação de ser poeta". Pergunto: O que é ser
poeta mulher?
DTV
- Não sei responder. Jamais me fiz essa pergunta. No ato de
escrever sou mulher, mas também ser humano. Se essa escrita
resulta nessa marca, a da mulher, só os pesquisadores
interessados no assunto poderão responder.
AAF -
Mas você como mulher, não pode responder ?
DTV
- Como mulher, respondo que , ao escrever sou simplesmente
poeta, não reparo em mim, mas na minha palavra que transforme
e repercute o que vejo, o que sinto e o que sou em poesia.
AAF
- O olhar feminino é mais atento no que diz respeito à
poesia?
DTV -
Arrisco, também aqui, um esboço de resposta: precisaríamos,
antes, precisar o que viria a ser esse "olhar
feminino". Apenas o olhar da mulher que faz poesia ou
considerá-lo também do ponto de vista masculino? Não creio
que a poesia feita por mulheres possua essa característica,
ou seja, de ser mais "atenta" do que a praticada
pelos homens. Talvez o que exista seja um discurso ou uma
linguagem com especificidades próprias. Mas também aí
precisaríamos definir que especificidades são essas. Será
que, no momento em que retiro o pronome em primeira pessoa do
meu poema, deixo de ser mulher ou abandono esse "olhar
feminino"? Eis aí uma questão complexa, sobre a qual,
reconheço, não ter capacidade de aprofundar, preferindo
deixá-la nas mãos de especialistas.
AAF
- Mas se deixar tudo nas mãos dos especialistas nós
estaremos perdidos...
DTV
- Não se trata de deixar "tudo" nas mãos de
especialistas. Refiro-me, neste caso, a estudiosos, sejam eles
acadêmicos ou não, que possam (e desejem, por dever do
ofício) levantar elementos comuns nas obras escritas por
mulheres e que sejam capazes de revelar (ou não) esse
"olhar feminino" em suas poéticas. De minha parte,
embora essa pareça ser cada vez mais uma exigência do nosso
tempo, não me enquadro, por pura incompetência, entre os
chamados poetas/críticos que, além da capacidade de analisar
e estudar a poesia praticada pelo outro, também de analisar e
falar, com a mesma desenvoltura, da própria. Em todo o meu
percurso poético, muito me dediquei ao estudo da poesia, mas
apenas no sentido de compreendê-la e melhor praticá-la.
AAF
- Existe poesia feminina ?
DTV
- Essa é igualmente uma questão que há anos vem sendo posta
das mais diversas formas (de forma polêmica, histérica,
passional e, até, científica) sem que tenha encontrado
sustentação na maioria dos casos. Trata-se de um terreno
pantanoso, no qual já se gastou muito papel e bate-boca e
que, no meu modo de ver, é pertinente, desde que a discussão
seja baseada em valores literários. Sem me deixar seduzir
pelo simplismo daqueles que defendem a idéia de que só
existe a boa ou má literatura ou do não reconhecimento dos
gêneros literários, posso dizer que acompanho a discussão
aqui do meu modesto observatório, só me irritando de verdade
quando vejo a questão da tal poesia feminina ser rotulada sob
o viés da pauta das chamadas revistas de mulher (ou para a
mulher).
AFF
- Então vamos falar em "valores literários".
Existe poesia feminina ?
DTV
- Tentado não "fugir da raia", eu diria que o fato
novo é o da mulher ter assumido a palavra, depois de séculos
de existência ágrafa. Na literatura brasileira, isso se deu,
na sua fase de maior consciência, a partir dos anos 60 do
Século XX. Naturalmente, isso trouxe uma "dicção"
nova, portadora de novas significações, em especial, sob o
aspecto da mulher como sujeito de sua própria palavra.
Conheço dois alentados trabalhos acadêmicos sobre o tema da
escrita feminina, A Mulher Escrita, de Lúcia Castello Branco
e Ruth Silviano Brandão (Casa Maria Editorial, 1989) e A
Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo, de Nelly Novaes
Coelho (Editora Siciliano, 1993) mas que, em que pese a
reconhecida capacidade de suas autores, não são conclusivos,
muito menos categóricos. Nelly coloca a questão da seguinte
forma: "a nível da linguagem, não se chega a nenhuma
diferenciação plausível entre a escrita do homem e a da
mulher". Entretanto, no sentido antropológico e cultural
em que essa literatura está inserida, é possível, na
opinião da professora, falar em uma literatura feminina
dentro dessa perspectiva histórica. Fico com ela, concordando
que, nesse sentido, existe sim, uma poesia feminina, mas,
ainda assim, no meu modo de ver, é preciso evitar
enquadramentos e rótulos que possam instaurar verdades
absolutas e, portanto, danosas.
AFF
- Como é que você vê o comportamento dos suplementos
culturais brasileiros que primam - ao meu ver - por absoluta
desonestidade especialmente neste ridículo e famigerado eixo
Rio-São Paulo...Veja você, ainda se fala nisso.
DTV
- Eis aí outra questão sobre a qual não vale a pena gastar
energias criativas. Os meios de comunicação de massas não
mais comportam (ou pouco comportam) aquilo que não seja
espetáculo ou moda. É preciso mastigar (e engolir) o que o
mercado produz e induz. No que concerne à literatura, com
honrosas exceções, o espaço é preenchido por resenhas de
publicações dos grandes conglomerados editorias (e, é
preciso reconhecer, que no meio disso tudo, obras de
reconhecidos méritos são ali abordadas). É a lei. Ponto.
Quanto ao Eixo Rio-São Paulo, nós mal damos conta do que
está ao nosso redor, tal é nosso gigantismo, quanto mais
filtrar o que vem de fora. Quem filtra essa enxurrada de
informações que chega às redações e aos computadores
domésticos diariamente em números inimagináveis há 20 ou
30 anos? A despeito dessa realidade, acredito que a cultura e
a arte verdadeiras sempre saberão encontrar caminhos de
sobrevivência. Se forem realmente relevantes, a peneira do
tempo encarregar-se-á de preservá-las.
AAF
- Você nasceu em Portugal. Isso tem algum significado na
sua poesia? Faço essa pergunta porque Portugal tem um
lugar especial dentro de mim, os poetas portugueses, a poesia
portuguesa...
DTV
- O fato de ter nascido em Portugal tem, sim, um significado,
porque acredito no atavismo, que também parece ser o seu
caso. Ninguém se livra facilmente, como já disse Mário de
Andrade, das heranças avós, elas estão coladas à pele e,
neste caso, vale dizer também que não há como deixar de
reconhecer a densidade e a beleza da poesia portuguesa, além
do profundo compromisso com a língua, demonstrado desde
sempre pelos poetas lusos. Talvez seja a poesia o gênero
literário onde melhor o escritor português constrói a sua
literatura, grande entre as grandes. Eles estão sempre
comigo, à cabeceira, celebração cotidiana da matriz. Desde
o velho bardo, fundador, até os contemporâneos. Portugal e a
sua cultura (incluindo aí a literatura, claro) permanecem em
mim. Entretanto, eu diria que sou uma poeta brasileira que
nasceu em Portugal. A minha dicção já é irremediavelmente
tropical, possivelmente, aqui e ali, pincelada por um certo
toque nostálgico, característica tão lusitana e à qual
não pude fugir.
AAF
- O Brasil respeita seus poetas?
DTV
- A poesia brasileira é muito jovem e, ainda assim, no
imaginário coletivo, está muito ligada às formas populares
e à música. Não temos uma tradição livresca e muito menos
de culto ao escritor, seja ele poeta ou ficcionista.
Faltou-nos, quem sabe, um fundador da brasilidade, nos moldes
como Camões o foi em Portugal, Dante na Itália, Shakespeare
na Inglaterra e outros tantos, sinônimos, nos dias de hoje,
da própria língua. O século XX, época de maior ruptura em
nossa história literária, produziu um admirável e
importantíssimo conjunto de poetas, que talvez venham a se
constituir nesses fundadores, mas que ainda não só
conhecidos do grande público (também por uma inaceitável
falha da educação formal). Para respeitar é preciso
conhecer e nós (ainda) não nos conhecemos, nação jovem e
rebelde à busca de seu destino.
AAF
- O que você me diz da poesia brasileira hoje?
DTV
- Em parte, já respondi a essa pergunta. Eu acrescentaria
apenas que, diferentemente da pasteurização que o
estabelecimento de rigores canônicos, em determinados
momentos, tentaram impor como justificativa de modernidade,
acredito que, hoje, o diálogo poético aceita (e busca) a
alteridade, a convivência polifônica como (re)afirmação
dessa modernidade e é justamente aí que reside a riqueza de
nossa poesia contemporânea. Não é possível, porém, dada a
excessiva proximidade (a distância é sempre mais prudente e
esclarecedora) dizer se este novo Século produzirá um
conjunto de figuras centrais como o anterior nos deu.
Difícil, porém, imaginar reunir novamente num mesmo período
um grupo tão extraordinário de poetas como o foi o de
Drummond, Bandeira, Cabral e Murilo, que definiu os rumos da
moderna poesia brasileira e dos quais, hoje, todos descendem,
até mesmo aqueles que se aproximaram/aproximam de sua
grandeza.
|
|
|