DAlila Teles Veras

 

RETRATOS FALHADOS

 

RETRATOS FALHADOS –  Por Irene Lucília Andrade

 

PINTURA DO COTIDIANO - Por Álvaro Alves de Faria 

 

 

  

RETRATOS FALHADOS – Dalila Teles Veras (*)

Por Irene Lucília Andrade

 

Conheci Dalila Teles Veras num tempo em que os poetas madeirenses se reuniam em torno de interesses comuns , que eram a poesia e os afectos que por ela os iam aproximando. Parecendo que não, houve um tempo de poetas na Madeira aí por inícios dos anos oitenta e pela década de noventa do séc. passado. As Feiras do livro do Funchal chamavam à ilha muita gente da escrita, como é costume e, entre os que vieram encontrei Dalila Teles veras. Penso que o mais correcto seria dizer: Foi Dalila afinal quem nos encontrou, a nós, poetas da ilha, remetidos quase sempre a um costumado silêncio , ignorados por não sei que destino de "mares não navegados", apesar da vocação marinheira dos nossos ancestrais.

 

Madeirense emigrada em 1957 para o Brasil, de regresso à Madeira de visita a familiares, Dalila levou depois para o seu país de adopção notícias nossas e a ela devemos a atenção e o interesse com que fez publicar na imprensa brasileira referências aos nossos trabalhos. De lá nunca perdeu de memória quem por aqui andava, apesar de algum tempo de ausência que a distância das terras impõe. Hoje está outra vez de volta e traz consigo uma bagagem de textos poéticos reunidos num livro a que deu o título de Retratos Falhados. Um livro que está incluído na colecção FONTE VELHA que inclui obras de Nuno Júdice, António Ramos Rosa e Ana Hatherly. Dalila Teles Veras tem um percurso com muita história. É jornalista e "agitadora de ânimos". Quero dizer que não só tem obra escrita nos géneros da poesia, da crónica e do ensaio em jornais e revistas do Brasil, mas também se dedica à divulgação de obras de outros autores e à realização de actividades inerentes à escrita e às artes em geral. Filiou-se na União Brasileira de Escritores onde foi secretária geral e membro do Conselho. É vice presidente do Instituto Fernando Pessoa em S. Paulo e co-fundadora do grupo LIVRE ESPAÇO que deixou de actuar em 1994 e promoveu durante 11 anos uma intensa divulgação da poesia. Possui vários prémios no âmbito destas actividades. Em 1993 ganhou o prémio APCA – da Associação de Críticos de Arte pela revista LIVRE ESPAÇO, como melhor realização cultural desse ano.. Em 2004 foi nomeada cidadã honorária pela Câmara Municipal de Santo André, cidade onde vive e é proprietária e directora da livraria e editora Alpharrábio. Colabora na realização de cursos, seminários e congressos e é frequentemente convidada pelas Faculdades e Instituições locais para apresentar palestras e participar em debates.

 

Depois desta breve referência ao seu trabalho, creio que está justificada a adjectivação com que classifiquei a sua postura no mundo das artes : Dalila é de facto uma "agitadora" de ânimos e inteligências.

 

Que pensa de si própria esta madeirense que escreve no Brasil ? Numa entrevista com Floriano Martins que faz parte do seu livro, ao ser interrogada sobre o possível abismo entre as culturas portuguesa e brasileira, tendo em conta o lugar da sua origem, Dalila responde: (2º parágrafo, pag. 10).

 

Sobre aspectos da linguagem e afinidades estéticas, acrescenta: (último parágrafo pag.10).

 

Depois de ter traçado incipientemente, em linhas ténues, o perfil da autora, volto no tempo de várias distâncias, a este momento: Passaram anos e eis que, inesperadamente, recebo um telefonema e uma voz soa, de longe, anunciando um livro, e a mesma voz lança-me um repto a que eu não poderia ficar indiferente, nem desastradamente esquivar-me. É então que, apreensiva e simultaneamente disponível para a simpatia, aparei a provocação e aceitei o repto. Pedia-me então Dalila Teles Veras que apresentasse o seu livro ao público madeirense. Falei em simpatia porque é apenas por delicadeza que desempenho esta tarefa. Na verdade ponho-me em dúvida sobre o conhecimento necessário ao modo de se apresentar um livro. Que regras, que modelo, que caminho?

 

A análise científica da obra, a sua índole, e o seu lugar no âmbito duma disciplina literária especializada, são matérias que não domino e por isso não me atrevo, em relação ao livro de Dalila, a uma incursão mais profunda e decerto mais elucidativa, como a autora merecia.

 

Sendo assim, uso a liberdade de me arriscar por uma leitura pessoal e avulsa de alguns textos, extraídos de acordo com as pausas que os olhos, ao folhear das páginas, vão fazendo, ao sabor dum agitar de sensações momentâneas, apenas pelo prazer que a ideia suscita ou a palavra sugere. Mas antes, noto a forma como o livro se organiza e verifico que ele se compõe de 3 tempos, cada um deles relativo a publicações anteriores. No entanto neste conjunto observo que, ao adicionar-lhe alguns inéditos, a autora estabelece 5 tempos, cujo primeiro momento, Retratos Falhados, dá o título à obra. Seguem-se Espelhos, Vestígios, Solilóquios e Pecados. Em Retratos Falhados a autora percorre as cidades, seus trilhos, pontes, calçadas, cinemas, livrarias, cafés, num périplo familiar aos olhos do repórter, sensível a um quotidiano labiríntico e sombrio. Ao rever-se em Espelhos vários, à procura de si e de certas ausências dolorosas, exercita a experiência de alguns ritos e solidões. Mais tarde em Vestígios experimenta os "desalinhos" da alma e a "dor física ", da saudade, abraça uma memória, oferece uma " rosa "em "dia de finados" e diz: …"o pranto aponta…a barca ao deus dará…Venho a Buenos Aires (para esquecer-te?)". Em Solilóquios a poeta reconhece-se assim: Dalila-poeta para compor os seus próprios silêncios. Por fim, Pecados será a sua réplica aos torvelinhos da anti-virtude.

 

Disse-me alguém um dia que não se pode ler poesia a qualquer hora. Será preciso uma disposição mental particular para mergulhar nesse oceano revolto de palavras especialmente significativas, as mais das vezes inquietas, e por isso mesmo indomáveis , em que os poemas se resolvem. Senão torna-se difícil cruzar-lhe as águas (se me deixam persistir na metáfora). Procuro então superar esse obstáculo e leio dois textos que escolhi:


Espólio
(pag.39)

 

"efigênia maria, era este o nome cuidadosamente manuscrito, à maneira de ex-libris, nas páginas inaugurais dos volumes encapados com papel de presente, colado com fita adesiva (gesto de ciúme e posse). relicários, os livros guardavam: cartas, recortes, postais, versos copiados, fotos (olhares aprisionados). efigênia maria amava a literatura e seus autores e deles colheu autógrafos (vinicius, bandeira, lygia - os preferidos?), troféus que não couberam em sua exígua mortalha"

 

O texto diz tudo o que não preciso de comentar mas mesmo assim me pronuncio. Fala de relicários, sítios onde se guardam, como numa espécie de estojo cordial, sentimentos preciosos com nomes vulgares: cartas, fotos, versos, autógrafos, locais que assinalam altos momentos da vida. Espólios de escrita como herança máxima que efigénia terá deixado ao mundo. Mas quem sabe ( e a dúvida é apenas minha ) se efigénia não os terá levado em registo etéreo para além da morte?

 

Memória (pag.70):

 

Em meu dedo/ o teu dedal/ tento,mãe/ costurar tua memória/ prender-te ao que resta/ incertos pontos/ que a vista embaçada/ não deixa urdir." Este espaço textual reflecte essa espécie de "labor" que a poeta urde demoradamente por "pontos" ainda que "incertos" em metáfora da saudade, lembrança duma mulher querida e do seu quotidiano nas horas pacientes dum bordado. Prolonga-se este "labor" nos poemas saudade e desamparo sensação expressa na tal "dor física" que se transfere para diversos envolvimentos, marcas de ausência que perturbam a alma e são causa do seu "desalinho". (Pag. 73 e 74)

 

Saudade

 

A saudade

vê-se

:

uma dor física

projetada

nas frestas do armário

no retalho de tecido

do que foi a tua saia

no pé seco de manjericão

na jardineira esquecida

(ausência de tuas mãos)

A saudade

aprende-se

:

no gesto cotidiano

no diuturno sentir

da alma em desalinho

 

 

Desamparo

toda a saudade é uma espécie de velhice

Guimarães Rosa

 

aniversario

no aniversário de tua morte

(havia um clã

e o teu comando

elo imperceptível

a reunir e orientar –

era conforto e presença

certeza de juventude)

órfã, envelheci

 

 

Volto repentinamente atrás no folhear displicente do livro e encontro na página 34 este pequeno texto . Reconheço nele o ouvido atento à beleza, onde o olhar se macula de fealdade : As faxineiras do edifício.

 

"Surpreendentemente

 

(não obstante os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus, os oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as quatrocentas e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à espera de varrição, transporte e limpeza)

 

Cantam…"

 

E ainda outro: (pag. 33)

 

"Vizinha

 

Chove. Os pingos colam na poeira do vidro externo do elevador, formando um mapa imaginário da cidade entrevista, paisagem sobre paisagem, a vizinha, o sol nos dentes, diz bom dia e a manhã e os verdes do jardim entram com ela no elevador e também dizem bom dia, ao contrário daqueles que são o contrário e apressam o passo para evitar dizer bom dia, diz bom dia e realmente se faz bom dia, a vizinha sai para o trabalho com o seu bom dia ensolarando o dia que amanheceu chuvoso."


Este poema transcreve, à maneira dum lied ou sinfonia, um lei-motiv que lhe confere uma índole musical: A repetição intencional da expressão bom dia, está como nota harmoniosa num conjunto disfónico.

 

Dalila Teles Veras cultiva o seu "munus" poético pelo espírito do olhar insistente sobre o mundo e particularmente o mundo urbano, frio, impessoal, desmedido. E isto confirma-se pelo que ela própria confessa na entrevista que concedeu a Floriano Martins e vem em lugar do que poderá ter sido um prefácio do livro Retratos Falhados. Afirma também o seu diálogo com a Pintura, através do contacto com artistas contemporâneos residentes no Brasil , com quem tem trabalhado e mantém " afinidades estéticas". Eis mais um traço da sua personalidade inquieta perseguindo suas próprias "utopias" e "transversalidades" culturais. Mas, mais do que as suas declarações formais, conforme ela própria deseja, serão os seus poemas que hão-de oferecer aos leitores possibilidades de outras descobertas.

 

Dalila Teles Veras transporta de Portugal a matriz duma língua que, em paragens brasileiras , transmuta os verdes rumores da ilha-mãe, num sotaque de "açúcar", memorial que admite ser, no esquecimento, uma possível "Caixa de Pandora à espera de quem a destape". Palavras suas com que termino, com votos de que seja assim.

Funchal, 28 de Maio, 2009

 

(*) Apresentação do livro Retratos Falhados na Festa do Livro do Funchal, Pavilhão dos Autores, 28.05.09

 

 

 

 
   

 

 Pintura do Cotidiano

 Dalila Teles Veras sente-se, quase sempre, numa janela a espiar a vida e as coisas ao seu redor. É quando ela pode examinar o que chama de avesso das coisas, do que vê. Este livro Retratos falhados é uma espécie de pintura de seu cotidiano e também de sua memória. Como ela esclarece, são retratos imprecisos, distorcidos. E nisso pode se explicar a poesia: "Mas a poesia é, também, a tentativa de dizer o inaudito ou aquilo que não parece ser, mas é. Tentativa de percorrer caminhos ainda não sinalizados".

retratos falhados de Dalila Teles Veras pertence à Coleção Ponte Velha, da Escrituras, que publica poetas e escritores portugueses. Dalila é natural do Funchal, Ilha da Madeira, onde nasceu em 1946. Vive no Brasil desde 1957, hoje na cidade de Santo André, na Grande São Paulo. Autora de Vários livros de poemas e de prosa, é dona de livraria e atua na área cultural do ABC paulista.

Este novo livro representa mais uma afirmação da poeta que ela é. Cite-se, como exemplo, dois poemas que dedica ao Dia de Finados, numa poesia não apenas de observação, mas de sentimento, das palavras colhidas onde o ser se encontra por inteiro: "ofereço-te uma rosa / (gostavas tanto delas...)/ orações seculares / poemas enlutados/ e este pranto incontido/ à beira do teu jazigo".

Nesse mesmo poema, três versos podem fazer o retrato da poeta: "Inúteis heranças lusas/ que não lavam dores/ nem preenchem vazios". Destaque-se, ainda, o poema Memória, em que Dalila Teles Veras foi buscar um quadro antigo que faz parte dessa fotografia invisível na parede de sua sala: "Em meu dedo/ o teu dedal/ (tento, mãe/ costurar tua memória/ prender-te ao que me resta)/ Incertos pontos/ em que a vista embaçada; não deixar urdir".

Os textos em forma de prosa poética e os poemas de retratos falhados foram escritos depois que Dalila publicou À janela dos dias, em 2002, reunindo toda sua obra até então. Trata-se de uma poeta consciente de seu ofício de escrever. Especialmente no que diz respeito à poesia, campo de tantas aventuras inócuas e inconseqüências. É uma mulher poeta que sabe da palavra, do poema, da poesia. E elabora sua obra com o cuidado da ave que constrói seu ninho num alpendre, para salvar-se das intempéries. E as intempéries são muitas.

Por isso este livro deve merecer um lugar especial na vida de Dalila Teles Veras, em que a poesia não é mera decoração. É mais, o que inclui decisivamente a existência. E o que inclui a existência e a respiração pode ser o significado maior da poesia. Como escritora brasileira nascida em Portugal, ela afirma com absoluta razão: "Difícil desvencilhar-se da carga atávica e das heranças avós".

Álvaro Alves de Faria - Jornal "Rascunho", Curitiba, Dezembro de 2008

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